Religião

Celebrar a ressurreição hoje e sempre

Celebrar a ressurreição tendo diante de si a paixão e a morte.

Como celebrar a vitória de vida sobre a morte quando a morte é uma ameaça tão palpável?
Cristãos precisam redescobrir a experiência da Palavra e do sacerdócio batismal.

Desde que a crise desencadeada pelo contágio da Covid-19 irrompeu no mundo e se instalou em boa parte dos países marcados pela fé cristã, várias decisões sanitárias começaram a impactar o conjunto das igrejas e sua pastoral.
Praticamente em todos esses países, as cerimônias litúrgicas com a presença do povo foram suspensas.

Inúmeras iniciativas, utilizando-se das ferramentas da mídia digital, têm sido então propostas, com a intenção de alimentar a fé dos fiéis que, mais do que nunca, em quarentena ou isolamento, necessitam dos recursos que lhes conferem os ritos e símbolos através dos quais celebram e dão sentido à sua experiência religiosa.

Alguns gestos simbólicos realizados pelo papa Francisco, como o da oração diante do crucifixo na Praça de São Pedro, no dia 27 de março, provocaram grande impacto.
Não poder, porém, celebrar os grandes momentos litúrgicos da Semana Santa, como o Domingo de Ramos e o Tríduo Pascal, deixa muitos fiéis incomodados.

A proposta de uma experiência mais despojada, centrada na meditação da Palavra divina, tem sido incentivada, mas será que ela responde à necessidade dos fiéis?

Antes de aprofundar essa questão, é importante dar-se conta do significado da pandemia da Covid-19 para a humanidade e o pavor que ela provoca em todas as pessoas.
Segundo alguns analistas, é a primeira vez que o contágio de um vírus pode afetar com tanta rapidez todos os países, atingindo, sobretudo, as pessoas mais vulneráveis.
Outras doenças, tão ou mais letais, já assolaram a história humana, ceifando milhões de vidas.
Não, porém, com a rapidez da atual pandemia e numa época em que a ciência e a técnica pareciam dispor de todos os recursos para enfrentá-la.

Trata-se da globalização inusitada de uma fragilidade para a qual a arrogância antropocêntrica não estava preparada.

A principal medida sanitária tomada, quarentena ou isolamento, fez com que a aceleração, com a qual grande parte do mundo estava habituada, cedesse o lugar à lentidão.

A um novo aprendizado do significado do “estar juntos” num lar, a novas formas de se comunicar e, também, a muitos gestos de serviço e solidariedade.

O impacto dessa crise na vida econômica levanta certamente sérias questões, sentidas por todos os que perdem seus empregos e começam a experimentar todo tipo de insegurança e precariedade.
O que mais assusta, porém, é o sentimento de uma ameaça que paira no ar, a de ser contaminado e não resistir, o que coloca cada um diante da possibilidade real de uma morte próxima.

A morte, como mostraram tantos pensadores ao longo da história, é a assinatura da finitude humana.

Ariano Suassuna, em sua obra Auto da Compadecida, diz que ela é o “único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre”.
Embora constitua a maior certeza da existência, a razão moderna quis exorcizá-la ou eliminá-la, escondendo-a do cotidiano da maioria das pessoas ou associando-a à sorte dos excluídos, dos perdedores e dos infelizes.

Provavelmente, nunca, ao mesmo tempo, tanta gente tenha se defrontado com sua exibição a todo instante.

Perguntando-se sobre a própria morte, lamentando-se pela de entes queridos sepultados sem as devidas e merecidas despedidas que supõem as exéquias.

Como celebrar o mistério central da fé, a paixão, morte e ressurreição de Jesus, quando a descoberta de uma vacina ou de um tratamento eficaz se anunciam tão distantes, com o agravante, no caso brasileiro, de os cristãos se encontrarem numa sociedade tão dividida, em que a principal instância do poder político da nação não se importar com a sorte dos mais vulneráveis?

A “escuta da Palavra”.

O mundo católico, tão habituado aos “sinais” sacramentais, que remetem aos sentidos corpóreos, vive essa dificuldade com mais intensidade que o universo do protestantismo histórico, já acostumado com uma fé cujo fundamento é a escuta e a meditação da Palavra de Deus.
A “escuta da Palavra” já faz, porém, parte da experiência de fé das comunidades católicas.

Que, com o Vaticano II, viram na Palavra a “alma” do cotidiano da existência e da inteligência de sua fé.

Mesmo assim, os sinais e símbolos próprios aos ritos tão ricos desse período litúrgico, são um bálsamo para a experiência tão arraigadamente corpórea dos fiéis católicos.
Como então celebrar o que é tão vital para o imaginário desses fiéis em celebrações nas quais eles não estão presentes?

Como celebrar a vitória de vida sobre a morte quando a morte é uma ameaça tão palpável?

Duas perspectivas emergem no horizonte: a que aprofunda a redescoberta de que a Palavra é a alma da existência e da inteligência da fé;
a que remete à vocação laical de toda a Igreja, que goza, segundo a Lumen gentium, do mesmo múnus sacerdotal, profético e real.
A primeira, já vivida de muitas formas em círculos bíblicos, grupos de oração, celebrações da Palavra, conduz à experiência central da revelação:
a de um encontro entre duas liberdades, a divina, que chama, a humana, que responde, percorrendo juntas um caminho que a Bíblia hebraica denomina aliança e o Novo Testamento filiação.

A escuta da Palavra leva ao essencial e ajuda a entender o quanto os demais sentidos corporais podem ser tentados a erigir em absoluto o que é relativo.

Trata-se de um caminho percorrido por todos os grandes místicos.

Que, quanto mais experimentam a proximidade de Deus, mais vivem da certeza de que o que experimentaram não é ele, pois Deus é sempre maior.
Essa via “negativa” ou apofática, anda, porém, junta com a “positiva” ou catafática.
Nesse sentido, a segunda perspectiva, pode ajudar os fiéis a descobrirem, sobretudo, o múnus sacerdotal, profético e real de sua vocação.
Não só o padre é o detentor das “bênçãos” divinas.

Como diz Deus, em Nm 11,29, “que bom seria se todo o meu povo fosse constituído de profetas e eu, o Senhor, depositasse nele meu Espírito”.

Ao identificarem o ministro ordenado com o culto e os sacramentos, muitos fiéis católicos esquecem que eles também receberam, no batismo, o dom do Espírito.

E que, portanto, podem igualmente dispensar as bênçãos de Deus para os demais.
Oxalá, ao revisitarem esta descoberta do Concílio, os católicos se deixem inspirar nesse tempo e, usando de sua imaginação, ressignifiquem os diversos sinais e símbolos próprios aos rituais com os quais celebram, através dos sentidos corporais, o mistério central de sua fé.
Nas últimas semanas várias iniciativas nesse sentido têm surgido.

Que o medo da morte não nos paralise.

Mas nos faça descobrir a força do Deus que ressuscita Jesus e nos ressuscita com ele, para sermos no mundo o sinal de sua benevolência, suscitando esperança e vida plena.

*Geraldo De Mori, SJ é teólogo, professor de teologia sistemática na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, onde é o reitor.

Fonte: Dom Total