Religião

Ponderar o custo do Reino de Deus

Ponderar o custo do Reino de Deus

Reflexão sobre a liturgia do 23º domingo do tempo comum

1ª leitura: (Sb 9,13-18b[19]) O discernimento e a ponderação, dons de Deus ­­–  Saber discernir é o que Salomão pediu a Deus (1Rs 3,9). Também o autor  de Sb pede isso (9,1-19) e ensina que se deve pedi-lo (9,13-19). Nosso  esforço intelectual não é o suficiente. As faíscas do Espírito de Deus  não se deixam programar; devem ser recebidas como dádivas. * 9,13 cf. Is  40,13; Rm 11,34; 1Cor 2,16 * 9,15-16 cf. Rm 7,14-25; Is 38,12; Jo  3,6.12 * 9,17-19 cf. Br 3,36-38;­­­­ 4,1-4; Mt 11,27.

2ª leitura: (Fm 9b-10.12-17) “Não mais como escravo, mas como irmão” –  O escravo Onésimo fugira de seu dono, Filêmon, discípulo de Paulo.  Paulo lho manda de volta, mas agora batizado, portanto “filho” de Paulo,  como o próprio Filêmon (v. 10). Por isso, Filêmon o deve receber não  mais como escravo, mas como irmão (v. 16). A abolição da escravidão  ainda não se impunha como perspectiva histórica no tempo de Paulo, mas  mesmo assim devia realizar-se, entre os cristãos, o “nem escravo, nem  livre” de Gl 3,28. Deste Espírito novo surgiram também novas estruturas,  mais tarde. * Fm 9 cf. Ef 3,1; 4,1; Cl 4,18 * Fm 16 cf. Cl 3,22–4,1; Ef  6,5-9.

Evangelho: (Lc 14,25-33) Saber ponderar as exigências do Reino –  Muitos pretendem seguir Jesus, mas será que sabem que seu caminho  conduz ao Gólgota? Daí as duras exigências que Jesus formula: abandonar  família, sucesso, vida (14,25-27) e ponderar sobriamente sua força e  disponibilidade (14,28-32). Em resumo: o discípulo deve largar tudo  (14,33). Como isso se realiza na vida de cada um, não é dito aqui. Mas  uma coisa é certa: Jesus não pede o impossível, mas a gente deve  preparar-se para tudo que for possível. * 14,25-27 cf. Mt 10,37-38;  16,24; 19,29; Mc 8,34; Lc 9,23; Jo 12,26 * 14,33 cf. Mt 6,20-21; Lc  12,33,34.

A sabedoria nunca é conquistada para sempre. Sb 9 (1ª leitura)  é a prece da Salomão pela sabedoria; a segunda parte (v. 13-19) explica  quanto ela é indispensável. Mas o mundo de hoje parece carecer dela  mais do que Salomão. Nem mesmo respeita suas próprias fontes de  subsistência, sacrificando tudo à manutenção de obscuros poderes e  lucros, com a cumplicidade de praticamente todos, deixando-se envolver  no jogo da competição e do consumo…

A sabedoria ensina a dar a  tudo seu devido lugar, a ponderar o que é mais e o que é menos  importante. Isso pode conduzir a conclusões que, aos olhos de pessoas  superficiais, parecem loucura. As exigências do seguimento de Jesus  parecem loucura: “Odiar (= não preferir) pai e mãe, mulher, filhos,  irmãos e irmãs” (Lc 14,26), por causa de Cristo e seu evangelho, não é  isso uma loucura? Não, diz Lucas (evangelho). É a  consequência da sabedoria cristã, da ponderação a respeito do  investimento necessário para o Reino de Deus. Começar a construir a  torre sem o necessário capital é que é loucura, pois todo mundo ficará  gozando da gente porque não conseguiu concluir a obra! A alusão à torre  de Babel, símbolo da vaidade e confusão humana, é evidente. O homem  sábio faz seu orçamento: decide quanto ele vai investir. No caso do  cristão, o único orçamento adequado é o do investimento total, já que se  trata do supremos bem, sem o qual os outros ficam sem sentido. Ainda  bem que os recursos são inesgotáveis.

A sabedoria cristã consiste  em ousar optar radicalmente pelo valor fundamental, mesmo se isso exige  uma escolha dolorosa contra pessoas muito queridas, realidade que se  repetia diariamente na Igreja do tempo de Lc. Estas palavras foram  dirigidas às “grandes multidões” que seguiam Jesus (Lc 14,25), não só a  monges e ascetas. Além disso, formam a sequência de exortação ao convite  gratuito e a parábola do grande banquete, em que Jesus ensina a dar a  preferência às pessoas “não gratificantes” em vez dos familiares e  amigos (cf. dom. pass.). Assim, “não preferir” seus familiares se pode  referir, concretamente, a duas realidades: a perseguição, que obriga o  cristão a preferir o Cristo acima dos laços de parentesco e até acima da  própria vida (sentido primeiro); mas também a preferência, por causa do  Evangelho, por categorias de pessoas pouco estimadas, excluídas, às  custas do círculo social costumeiro.

Ouve-se, em nosso ambiente,  muitas vezes, a observação de que é preciso ter “bom senso” em questões  de justiça e direito. Será que não se chama de bom senso o que é apenas  medo? Quando é claro que o amor de Cristo está em jogo, a sabedoria  cristã exige um investimento radical e estratégias para lhe abrir  espaço. Porém, radicalidade não é imprudência. É liberdade frente àquilo  que nos pode desviar do que é prioritário. A sabedoria cristã nos ajuda  a estabelecer as opções preferenciais certas. Ora, para não perder  tudo, é preciso realizar as opções sabiamente feitas. Quem acha seguir  Cristo é fundamental, deve fazê-lo, custe o que custar. Portanto, o  sábio cristão não é o sofista brilhante, que explica tudo, sem jamais se  comprometer. É o homem que, ao mesmo tempo lúcido e convicto, investe  tudo no que julga ser o sentido último da existência e da História, à  luz na fé em Cristo Jesus. O sábio não é aquele que hesita, quando se  trata de saltar, mas aquele que salta; o que hesita é que cai…

Para  Filêmon, o homem de bem da cidade de Éfeso, amigo de Paulo, o bilhete  que seu escravo Onésimo trouxe consigo, ao voltar de uma escapada até a  prisão de Paulo, deve ter parecido loucura (2ª leitura).  Porém, é a mais pura sabedoria cristã. Onésimo fugiu de Filêmon, para  assistir a Paulo na prisão. Paulo o batizou. Agora, não mais precisando  dele, o devolve a Filêmon, porque, comercialmente falando, é sua  propriedade (Paulo ainda não pensava numa sociedade sem escravidão; ou  não achava muito importante, por causa do curto prazo da Parusia: cf.  1Cor 7,20-23). Mas, espiritualmente falando, “em Cristo”, ambos, Onésimo  e Filêmon, pertencem a uma nova realidade, em que não há mais senhor  nem escravo, mas somente irmãos de Cristo e filhos do Pai (cf. Gl 3,28);  e filhos também de Paulo, que a ambos gerou na fé (batizou-os).  Portanto, Filêmon acolha seu escravo não mais como escravo, mas como  irmão, como se acolhesse o próprio Paulo.

 Os cristãos e as estruturas sociais

 “Se  Deus só serve para deixar tudo como está, não precisamos dele”: palavra  de uma agente da educação popular. O Deus que é apenas o arquiteto do  universo, mas fica impassível diante da injustiça dos habitantes de sua  arquitetura, não tem relevância alguma. O cristianismo serve ou não para  mudar as estruturas da sociedade?

São Paulo tinha um amigo,  Filêmon. Este – como todos os ricos de seu tempo – tinha escravos, que  eram como se fossem as máquinas de hoje. Um dos escravos, sabendo que  Paulo tinha sido preso, fugiu de Filêmon para ajudar Paulo na prisão.  Paulo o batizou (“o fez nascer para Cristo”). Depois o mandou de volta a  Filêmon, recomendando que este o acolhesse, não como escravo, mas como  irmão… Mais: como se ele fosse o próprio Paulo (2ª leitura).

Essa  história é emocionante, mas nos deixa insatisfeitos. Por que Paulo não  exigiu que o escravo fosse libertado, em vez de acolhido como irmão,  continuando escravo? Aliás, a mesma pergunta surge ao ler outros textos  do Novo Testamento (1Cor 7,21; 1Pd 2,18). Por que o Novo Testamento não  condena a escravidão?

A humanidade leva tempo para tomar  consciência de certas incoerências, e mais tempo ainda par  encontrar-lhes remédio. A escravidão, naquele tempo, era uma forma de  compensação de dívidas contraídas ou de uma guerra perdida. Imagine que  se resolvesse desse jeito a dívida externa do Brasil! Seríamos todos  vendidos (se já não é o caso…). Antigamente (?), a escravidão fazia  parte da estrutura econômica. Na Idade Média, com os numerosos raptos  praticados pelos piratas mouros, surgiram ordens religiosas para  resgatar os escravos, até tomando o lugar deles. Mas ainda na época  moderna, a Igreja foi conivente com a escravidão dos negros. A  consciência moral cresce devagar, e mudar alguma coisa nas estruturas é  mais demorado ainda, porque depende da consciência e das possibilidades  históricas. As estruturas manifestam só aos poucos sua injustiça, e  então leva séculos para transformá-las.

Porém, a lição de Paulo é  que, não obstante essa lentidão histórica, devemos viver já como irmãos,  vivenciando um espírito novo, que vai muito além das estruturas  vigentes e que – como uma bomba-relógio – fará explodir, cedo ou tarde, a  estrutura injusta. Novas formas de convivência social, voluntariados  dos mais diversos tipos, organismos não governamentais, pastorais junto  aos excluídos – a criatividade cristã pode inventar mil maneiras para  viver já aquilo que as estruturas só irão assimilar muito depois.

Dom Total