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Eucaristia: Dom de Cristo à Comunidade

Eucaristia: Dom de Cristo à Comunidade

Reflexão sobre a liturgia do Corpus Christi

Johan Konings*

1ª Leitura: (Gn  14,18-20) Melquisedec oferece pão e vinho – Melquisedec, rei de Salém  (Jerusalém), é sacerdote do Deus altíssimo (Gn 13; Sl 110 [109], 4;cf.  Hb 7,1-9). Conhece Deus como criador do céu e da terra. Oferece-lhe os  mais nobres dons: pão e vinho, o sustento cotidiano do homem; depois, os  oferece a Abraão, seu hóspede. Como rei e sacerdote, Melquisedec  prefigura Cristo; sendo não-judeu, significa a salvação universal; seus  dons de pão e vinho recebem seu sentido pleno na ceia e no sacrifício de  Cristo e da Igreja, o sacrifício universal, “de onde nasce o sol até o  poente” (cf. Ml, 1,11).

2ª Leitura: (1Cor  11,23-26) Memorial da morte de Cristo – Mais antigo testemunho da  celebração da Última Ceia, mencionado por Paulo ao ensejo dos abusos dos  coríntios nesta celebração (humilhação dos membros pobres da  comunidade; 11,17-22). É impossível ter comunhão com o Cristo  sacrificado, enquanto desprezamos seus irmãos. O sacramento nos lembra o  Senhor morto e ressuscitado, até que ele venha; então, nos julgará  conforme nossa doação aos irmãos, prioritariamente, aos mais humildes.  Se não respeitamos seu “corpo” que é a comunidade, a participação  eucarística de seu corpo e sangue doados na cruz significa nossa  condenação. *Cf. Lc 22,14-20; 1Cor 10,16-17; Ex 12,14; 24,8; Hb 8,6-13;  Jr 31,31).

Evangelho: (Lc 9,11b-17) Jesus sacia  as multidões – Saciando a multidão, Jesus mostra duas qualidades  divinas: poder e bondade. O Reino de Deus está presente. Leva à  plenitude os gestos de Deus no A.T. (Ex 16; 2Rs 4,42-44). Menos ainda  que no deserto, Deus deixa seu povo sem pão. Ao descreve o sinal do pão,  Lc pensou na Eucaristia (9,16); os discípulos (os ministros da Igreja)  distribuem o pão sobre o qual Jesus pronunciou a “eucaristia” (ação de  graças), na Última Ceia (cf. Lc 22,19; 24,29-30; 24,35) *Cf. Mt  14,13-21; Mc 6,30-44; Jo 6,1-13; Is 25,6.

Neste ano “lucano”, vale  a pena considerar o evangelho de Corpus Christi (a multiplicação dos  pães) sob o ângulo de Lucas. Quando se compara seu texto com o paralelo  de Mc, nota-se uma extrema simplificação. Em Mc, a multiplicação do pão  está no fim da missão dos discípulos, que inclui a narração  retrospectiva da morte de João Batista, ensejada pela opinião de Herodes  sobre Jesus (Mc 6,14-29). Lc conserva a pergunta de Herodes, aliás,  numa forma mais acentuada que em Mc; enquanto em Mc Herodes fica  duvidando se Jesus seria João voltado à vida, em Lc 6,9 a pergunta é:  “Quem é este, de quem eu ouço tantas coisas?” E omitindo a retrospectiva  da morte de João (mencionada em 3,19-20), Lc traz imediatamente a  multiplicação do pão (6,10-17). Depois, omite toda a matéria de Mc  referente à segunda multiplicação do pão (para que duas vezes contar a  mesma história?) e traz imediatamente, como contrapeso da pergunta de  Herodes, a pergunta de Jesus: “Quem dizem os homens que eu sou?”, com a  resposta de Pedro: “Tu és o Messias de Deus” (9,18-22; cf. Mc 8,27-29).  Assim, para Lc, a multiplicação dos pães sugere a resposta à pergunta de  Herodes (“Quem é este?”), no sentido de que Jesus é o Messias (como diz  Pedro). Lc apresenta a multiplicação dos pães como um sinal messiânico;  a própria situação do acontecimento era messiânica: Jesus estava  falando do Reino de Deus (9,11).

Ora, esse sinal messiânico tem,  em Lc como nos outros evangelhos, feições eclesiais. Todos os  evangelistas acentuam a maneira “eucarística” com que o pão é dado à  multidão: “Tomando os cinco pães… levantou os olhos para o céu,  pronunciou a bênção sobre os pães e repartiu-os e deu-os aos discípulos,  para que os entregassem à multidão” (9, 16). Parecem as palavras da  Consagração. A eucaristia da Igreja é a plenitude daquilo que Jesus  “assinalou” na multiplicação do pão. Mas essa plenitude passa por um  momento transformador: a cruz de Cristo. Isso, no-lo ensina a 2ª  leitura, relato paulino (e lucano) da instituição da Ceia: Jesus dando  ao pão e ao vinho da mesa pascal o sentido de serem seu corpo e sangue  dados por nós no sacrifício da cruz. O verdadeiro messianismo de Cristo,  a verdadeira libertação, não ocorreu lá nas colinas do mar da Galileia,  mediante a saciação da forme, mas na colina do Gólgota, quando não o  pão matéria, mas a vida justa dada até a morte é que liberta os homens. O  pão pode ser disso o sinal muito significativo, e quem sabe,  necessário, pois o próprio Justo e Servo escolheu este sinal.

Pão e  vinho – comida ao mesmo templo simples e festiva, cotidiana e solene –,  foi o que o misterioso rei e sacerdote do Altíssimo (portanto, do Deus  de Abrão), Melquisedec, ofereceu como sacrifício e ágape quando do  encontro com Abraão (1ª leitura). Não sacrifícios sangrentos, que podem  sugerir algum efeito mágico, mas os dons de Deus para a vida cotidiana.  Dom que Deus deu à as Igreja com um sentido bem mais rico do que  Melquisedec podia suspeitar!

Do dom de Deus, Mequisedec fez sua  oferta a Deus. Nós também oferecemos a Deus o dom que ele nos deu: o pão  e o Messias-Servo, que o pão significa. Estabelece-se assim a comunhão  que o próprio pão e vinho sugerem (cf. Lc 22,15-20. No pão que sacia a  família humana oferecemos a Deus nossa comunhão com seu dom por  excelência, Jesus, dado por nós. Mas então e inadmissível que a  comunidade cristã deixe seus membros sem o pão de cada dia. Isso é um  pecado contra o “corpo do Senhor”, nos ensina Paulo (2ª leitura),  (“corpo” tem sentido do Cristo presente na Eucaristia, mas também, da  comunidade eclesial). Ora, isso aí nos convida a um sério exame de  consciência! Será possível ter comunhão no pão que é o corpo dado por  todos, se não nos damos mutuamente o pão de cada dia, alimento do corpo  que é a comunidade. O cristianismo não é um espiritualismo, uma fuga em  belas ideias sobre Deus. O Cristianismo é a religião da Encarnação. Ser  Messias, para Jesus, significa dar pão em sinal do dom de si mesmo. A  Igreja, trilhando o caminho do Cristo, não pode deixar de fazer a mesma  coisa. “Vós mesmos, dai-lhes de comer” (Lc 9,13).

Eucaristia, banquete universal

O  distintivo dos primeiros cristão era a refeição comunitária (cf. At  2,32-34 etc.). O gesto de Jesus reunindo o povo no deserto e  providenciando milagrosamente pão para todos (evangelho) é um símbolo da  Igreja. Jesus quis ficar presente na Igreja no sinal da refeição aberta  a todos que aderissem a ele – muito diferente daqueles banquetes onde  geralmente só se convidam as pessoas da mesma classe, ou os que podem  pagar…

A multiplicação dos pães é sinal messiânico, sinal dos  tempos em que tudo acontecerá conforme o desejo de Deus, sinal do Reino  de Deus: fartura e comunhão. Mas é ainda prefiguração. A refeição à  beira do lago da Galileia se tornará completa somente quando Jesus der  seu próprio corpo e sangue, na cruz. Então já não será passageira: será  uma realidade de uma vez para sempre, no sacramento confiado à Igreja.  Este é também o sentido profundo que a Igreja vê no misterioso pão e  vinho oferecidos pelo sumo sacerdote Melquisedec, a quem até o pai  Abração presta reverência (1ª leitura).

A Eucaristia deve então  ser verdadeiro banquete messiânico, sinal dos tempos novos e  definitivos, em que as divisões e provações são superadas, na vida da fé  em Cristo Jesus. A desigualdade, o escândalo do super-ricos ao lado de  pobre morrendo de fome, a marginalização são incompatíveis com a  Eucaristia (2ª leitura). Na Eucaristia, Cristo identifica a comida  partilhada com sua própria vida e pessoa. O pão repartido se torna  presença de Cristo. Onde não se reparte o pão, Cristo não pode estar presente.

Tudo  isso dá o que pensar. Na multiplicação dos pães, Jesus não fez deserto  pão do céu, como o maná de Moisés. Nem transformou pedras em pão, como  lhe sugerira o demônio quando das tentações no deserto. Mas ordenou aos  discípulos: “Vós mesmos, dai-lhes de comer”… e o pão não faltou.  Porém, se não observarmos esta ordem de Jesus e não dermos de comer aos  nossos irmãos, ele também não poderá tornar-se presente em nosso dom.  Então, não só o pão, mas Cristo mesmo faltará.

Dom Total