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A Escritura cresce com aquele que a lê

A Escritura cresce com aquele que a lê

Dentre as muitas atividades que Johan Konings realizou, destaca-se, sem dúvida, a formação de várias gerações de agentes de pastoral para as diversas igrejas cristãs e de docentes para muitas instituições acadêmicas dedicadas ao e

Na tarde do dia 22 de maio de 2022, após uma presença de 50 anos como missionário da Igreja católica em terras brasileiras, o exegeta jesuíta belga Johan Konings, professor por 37 anos na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), concluiu sua “corrida”, após ter combatido o “bom combate” (2Tm 4,7). Nascido no Limburgo, região multicultural da Bélgica, marcada pelas línguas flamenga, germânica e francesa, fez toda sua formação filosófica e teológica na KU Leuven, onde defendeu sua tese de doutorado sobre o Evangelho de João. Ao chegar ao Brasil, em 1972, como padre fidei donum, iniciou suas atividades como professor de teologia e exegese bíblica na PUC RS (1972-1982), tendo também trabalhado na PUC Rio e, a partir de 1986, ainda como noviço jesuíta, na Faculdade de Teologia do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus (CES), instituição eclesiástica de ensino superior que, a partir de 2002, tornou-se, do ponto de vista civil, a FAJE. Soube como ninguém unir sua capacidade de trabalho na área acadêmica e pastoral, com o cultivo da arte do encontro e da amizade, com todo tipo de público: estudantes, pessoas das diversas atividades pastorais que exerceu, homens e mulheres procedentes das camadas cultas e das camadas de origem popular.

Dentre as muitas atividades que realizou, destaca-se, sem dúvida, a formação de várias gerações de agentes de pastoral para as diversas igrejas cristãs e de docentes para muitas instituições acadêmicas dedicadas ao ensino da teologia e das Escrituras. Para isso, empenhou-se em oferecer as ferramentas necessárias à formação, seja elaborando estudos sobre temas de sua área de pesquisa, o Novo Testamento, seja disponibilizando, através de traduções ou de publicações de pesquisas realizadas no país, várias obras de referência no estudo acadêmico da bíblia, através da Coleção Bíblica Loyola, que ele criou e acompanhou durante toda a vida, ou de obras de iniciação aos vários livros da Sagrada Escritura, com Coleção Bíblia Passo a Passo. Porém, como ele mesmo sempre dizia, a grande escola de estudos bíblicos é a pregação. Por isso, era importante oferecer uma inteligência acessível dos textos da liturgia dos vários ciclos (anos A, B, C) a quem na Igreja tem a missão de pregar e ajudar a meditar os textos da liturgia a cada domingo.

A arte da exegese bíblica demanda certamente o conhecimento de uma série de línguas, como também de inúmeros métodos científicos a partir dos quais entender os textos da revelação e torná-los acessíveis para os leitores e leitoras do presente. A Igreja do Brasil pós-concílio Vaticano II viveu um amplo movimento de “retorno às fontes” da própria fé, com o movimento bíblico e, sobretudo, com os vários grupos que, junto com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), fizeram da bíblia um dos pilares da experiência de Deus, da formação da comunidade de fé e do testemunho cristão. A leitura popular da bíblia, elaborada, entre outros, por Carlos Mesters, teve um papel fundamental nesse processo, mas seu desenvolvimento supunha a disponibilização das ferramentas necessárias para o acesso ao texto. O projeto de uma tradução oficial da bíblia da Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB), alentado por anos e concluído em 2018, contou, entre seus colaboradores mais decisivos, com Konings. Sua enorme capacidade de trabalho, seu gosto pela tradução, seu conhecimento profundo da língua portuguesa do Brasil, sua habilidade para relações, e, certamente, a disponibilidade dos demais colaboradores, tornaram possível levar o projeto até o fim, abrindo o caminho para que novos passos no domínio da hermenêutica bíblica possam ser dados por seus leitores/as.

Dom Walmor Oliveira de Azevedo, arcebispo de Belo Horizonte e presidente da CNBB, na homilia que fez na missa das exéquias do Pe. Konings, afirmou que o maior legado do exegeta belga para a Igreja do Brasil é a tradução da bíblia. Apesar de sua enorme erudição e da grande contribuição que deu para os estudos e a leitura da bíblia no país, Konings não gostava de atrair para si os “holofotes”. De fato, em 2011, por ocasião de seus 70 anos, e em 2021, por ocasião de seus 80 anos, as duas obras que foram organizadas em sua homenagem pela FAJE, mais que chamar a atenção para ele foram respectivamente dedicadas, a seu pedido, à Palavra de Deus, tema da 12ª Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos em 2008, no qual ele atuou como perito, e à Educação, questão que sempre lhe foi cara e que seria o tema da Campanha da Fraternidade de 2022. Suas contribuições nas duas obras indicam bem como entender seu legado à teologia do Brasil. O primeiro texto, “A palavra de Deus entre a letra e o espírito”, é sua visão do trabalho do exegeta. Segundo ele, a “letra”, ou texto, ou seja, aquilo que é chamado de “Palavra de Deus”, “só ganha sentido vivo e atual pelo espírito em que é interpretado”. São fundamentais para lê-la as abordagens histórico-literárias, mas insuficientes, constituindo, de certa forma, “material morto”, que “só se torna vital quando o leitor o assume no sentido que ele dá à própria vida” (KONINGS, 2012, p. 11, 16). Na entrevista que concedeu a Graziela Cruz, “Johan Konings, 80 anos: o homem, o biblista, o professor”, na obra que lhe foi oferecida por ocasião de seus 80 anos, retoma, sob certo ponto de vista, o caminho que vai da letra ao espírito, afirmando que se pode considerar “a bíblia inteira como uma “grande paideia, uma instrução para o povo de Israel e depois para sua extensão que é o cristianismo”, ou seja, como uma “pedagogia”, a ser vista como “sabedoria de vida e orientação para a felicidade” (CRUZ, 2021, p. 308).

Segundo São Gregório, o Grande, a “Escritura cresce com aquele que a lê”. Mais do que ninguém, Konings entendeu esse princípio hermenêutico e, certamente, seu legado ao “crescimento da Escritura” no Brasil foi ter disponibilizado as ferramentas necessárias para enfrentar os grandes desafios da “letra” do texto bíblico, para que, uma vez transpostos, pudessem, de fato, fazer irromper os novos e inusitados sentidos de seu “espírito”. Enquanto grande pedagogo da humanidade, a bíblia já ofereceu razões para crer, esperar e amar a muitas gerações que formadas por seu “espírito”. A maioria dos fiéis tem acesso à palavra divina somente nas liturgias de que participam a cada fim de semana. Nesse sentido, como observa o exegeta belga, conhecer os vários itinerários oferecidos na liturgia da palavra de cada domingo nos diversos ciclos é um caminho importante a ser valorizado por cada geração. Uma vez estabelecido o texto que veiculará a “letra” da palavra pela qual os fiéis e as comunidades serão “educados” no caminho de humanidade que lhes é proposto a cada semana ou a cada dia, certamente será importante também oferecer pistas para que essa “letra” se torne “espírito” que dá vida e faz viver. Essa tarefa, já iniciada desde que o cristianismo foi anunciado nas terras brasílicas, não é estabelecida de antemão, pois implica os leitores ou os ouvintes de cada geração nova que se deixará instruir pela escola de humanidade que são as Escrituras. Como Jesus, que tinha que partir para que o Espírito fosse dado, revelando toda a verdade (Jo 16, 7. 13), o exegeta, após preparar o caminho para todo leitor futuro, se apaga, deixando que o Espírito faça nele sua obra, deixando emergir, no ato de leitura, um novo sentido, que consiste em tirar da letra morta o espírito que faz viver.  Cabe agora, às gerações que virão, deixar-se visitar, no ato de leitura, que sempre as implica, pelos muitos significados que a Palavra de Deus pode dar para suas existências.

Referências

KONINGS, J. A palavra de Deus entre a letra e o espírito. In GASDA, E. Sobre a Palavra de Deus. Hermenêutica bíblica e teologia fundamental. Goiânia/Petrópolis: Editora PUC Goiás/Editora Vozes, 2012, p. 11-22.

CRUZ, G. Johan Konings, 80 anos: o homem, o biblista, o professor. RIVAS, E.; TAVARES, S. Educação: distopias e veredas. Homenagem a Johan Konings por ocasião de seus 80 anos. São Paulo, Loyola, 2021, p.305-313.

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