Religião

Não Condenar Filhos LGBT

Não Condenar Filhos LGBT

O papa e a postura humanizante: ‘não vos assusteis. Nunca condeneis um filho’, diz Francisco aos pais

Papa Francisco aconselha pais (AFP)

Luís Corrêa Lima*

A figura de São José, empenhado em proteger a vida do menino Jesus em perigo, foi a inspiração do papa Francisco para falar aos pais que enfrentam os diferentes problemas de seus filhos. José recorreu aos sonhos, então considerados um meio pelo qual Deus se revelava, para reconhecer a Sua voz no meio de outras vozes. Em situações que não compreendemos e que parecem não ter solução, muitas vezes é a oração que nos dá a intuição da saída, de como resolver aquela situação. Rezar possibilita ouvir a voz que pode nos dar a mesma coragem de José, para enfrentar dificuldades sem sucumbir.

Entre os problemas enfrentados pelos pais, o papa menciona os “que veem orientações sexuais diferentes nos filhos; como gerir isto e acompanhar os filhos e não se esconder numa atitude condenatória. […] Pensemos em como os ajudar. E a estes pais, digo: não vos assusteis. […] Nunca condeneis um filho”. E elogiou a “coragem de pai e de mãe que acompanham os filhos sempre, sempre”(aqui).

Muitas vezes a vida dos filhos LGBT está em perigo mesmo dentro de casa. Há pais que dizem preferir um filho morto ou viciado em drogas a um filho gay, uma filha prostituta a uma filha lésbica. E que dirá um filho ou filha que se descobre transgênero, não se identificando com o sexo que lhe é atribuído ao nascer? Com tamanha hostilidade, a autoestima destas pessoas é devastada. A escola, por sua vez, pode ser um inferno onde a intimidação sistemática ou bullying não é rara. O caminho para a tristeza, a depressão e o suicídio se abre facilmente. Basta se conversar com LGBT adultos sobre suas lembranças da família e da escola para se ter um retrato desta triste realidade. Muitas mulheres trans foram execradas por suas famílias, além de terem que abandonar cedo a escola. Hoje, sem escolaridade e com poucas oportunidades profissionais, inúmeras são impelidas à prostituição e à marginalidade. No Brasil, a média de vida destas mulheres não chega a 40 anos.

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Esconder-se em uma atitude condenatória, contra a qual alertou o papa, é muito comum. Infelizmente a religião cristã é com frequência usada para isto. Muitos interpretam a Bíblia literalmente, alegando que Deus criou o homem e a mulher para se unirem e procriarem, portanto não há lugar para homossexuais e transgênero. Estes seriam aberrações. Eles devem ser submetidos a exorcismo ou a “oração de cura e libertação”, caso contrário devem ser afastados das “pessoas de bem”.

Recentemente o papa escreveu à irmã norte-americana Jeannine Gramick, felicitando-a por seu jubileu de ouro no trabalho com os LGBT+. Ele afirmou que “foram 50 anos com este ‘estilo de Deus’, 50 anos de proximidade, de compaixão e de ternura”; como a ternura de uma irmã e de uma mãe (aqui). A bem da verdade, as cinco décadas de intenso e valoroso trabalho desta irmã incluíram enfrentar uma longa e penosa oposição por parte da alta hierarquia eclesiástica. Em um pontificado anterior, ela chegou a ser proibida permanentemente de exercer qualquer atividade pastoral em favor desta população, por discordar da doutrina da Igreja a respeito da maldade intrínseca dos atos homossexuais e da desordem objetiva da inclinação homossexual (aqui). Em nome de sua consciência diante de Deus, irmã Gramick decidiu não obedecer, mas prosseguir seu trabalho. Hoje o papa Francisco lhe dá razão.

A discordância desta doutrina toma corpo. O arcebispo de Luxembugo, cardeal Jean-Claude Hollerich, é também presidente da Conferência dos Bispos da Europa e relator geral do próximo Sínodo dos Bispos, que trata da Sinodalidade. Ele afirma que o ensinamento da Igreja sobre a homossexualidade está errado, por não ter fundamentos sociológicos e científicos corretos. Em preparação para este Sínodo, a Igreja na Alemanha realiza o Caminho Sinodal, reunindo todos os seus bispos, junto com representantes de ordens religiosas, do laicato, de dioceses e paróquias, de universidades e com especialistas de diversos campos. Com a aprovação de ampla maioria, eles propõem mudanças no Catecismo da Igreja Católica sobre a homossexualidade.

Não é possível prever com segurança o resultado destas iniciativas. Sem dúvida, o seu sucesso desmantelaria as atitudes condenatórias que pretendem ter respaldo religioso. De qualquer maneira, ter uma postura humanizante e proteger a vida em perigo, a exemplo de São José, é uma tarefa urgente.

Dom Total

*Luís Corrêa Lima é sacerdote jesuíta, professor da PUC-Rio e autor do livro Teologia e os LGBT+: perspectiva histórica e desafios contemporâneos (Ed. Vozes).