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Vai uma cachaça aí, Francisco?

Vai uma cachaça aí, Francisco?

Se ofender com a piada de Francisco diz mais sobre as expectativas que certos católicos depositam sobre o pontífice que qualquer outra coisa.

'Vocês não têm salvação. Muita cachaça e pouca oração', respondeu Francisco ao padre paraibano

‘Vocês não têm salvação. Muita cachaça e pouca oração’, respondeu Francisco ao padre paraibano (Reprodução)

Mirticeli Medeiros*

Um padre de Campina Grande (PB), chamado João Paulo Victor Souto, jamais imaginou que o vídeo registrado pelo seu amigo, padre Carlos Henrique Resende, que mostra um momento de descontração do papa, viralizaria no Brasil. O sacerdote, que participava da audiência geral com Francisco, na última quarta-feira (26), no Vaticano, pediu que o pontífice rezasse pelos brasileiros. Em tom bem-humorado, o santo padre lhe respondeu: “Vocês não têm salvação. Muita cachaça e nada de oração“.

Para a maioria dos brasileiros, foi mais uma demonstração do quanto Francisco é “escandalosamente” humano. Digo escandalosamente porque, para alguns poucos “patriotas” das redes sociais, a brincadeira foi de mau gosto. Porém, curiosamente, a piada só foi sem graça para aqueles que são resistentes a Francisco desde sempre. Nenhuma novidade.

A verdade é que Francisco jamais renunciou a seu ‘humor portenho’.

Num momento informal como aquele, que ocorre logo após a tradicional catequese de quarta-feira, quando o papa cumprimenta peregrinos de todo o mundo, esse tipo de troca com os fiéis é recorrente. Aliás, naquele mesmo dia, Francisco tomou até um mate argentino, após ter questionado se a erva em questão era gaúcha e ‘brasileña’. Ou seja, deu Brasil no Vaticano esta semana.

Sem contar que não é a primeira vez que Francisco escolhe o tema ‘cachaça’ para arrancar sorrisos dos brasileiros. Muitas pessoas que presenciaram esses momentos inusitados com ele se manifestaram nas redes sociais após a viralização do último vídeo.

O professor brasileiro Luís Felipe Barbedo disse que o então cardeal Bergoglio, em passagem pelo Brasil, entoou a marchinha de carnaval Cachaça não é água quando esbarrou com um grupo de brasileiros. O jesuíta Laércio Lima, em encontro com o papa em Roma, após convidá-lo para visitar sua casa religiosa, recebeu a resposta: “Irei sim, mas só se você me oferecer uma dose de cachaça”.

E para quem acha que ele solta essas pérolas somente aos ‘fiéis comuns’, que turistam pelo Vaticano, está muito enganado. Até chefes de Estado viram esse lado cômico de Francisco. Em muitas das fotos oficiais, vemos muitos desses líderes caindo na risada.

A então presidente Dilma Rousseff, em 2014, revelou à imprensa que as conversas com Francisco sempre foram descontraídas, e ambos chegaram até a falar de futebol em algumas dessas reuniões. Ao general Mourão, atual vice-presidente da República, que esteve no Vaticano em 2019, o pontífice chegou a perguntar quem sairia ganhando numa eventual disputa entre Maradona e Pelé.

Se ofender com a piada de Francisco diz mais sobre as expectativas que certos católicos depositam sobre o pontífice que qualquer outra coisa. Como o papa prefere encarnar a imagem de sacerdote do povo, que vai ao encontro das pessoas, soa agressivo àqueles que são ligados afetivamente (e até politicamente!) à figura do papa monarca. E são os mesmos que sobre-exaltam os pontífices impecavelmente paramentados com suas vestes reais do século passado.

Os gestos de Francisco encantam porque estão ligados mais àquilo que ele é que ao cargo que ocupa.

Inclusive é ele mesmo quem diz que as pessoas não podem olhar para os padres católicos e enxergarem, simplesmente, um bando de “managers”.

A reforma de Francisco, para além da questão estrutural, passa também pelo espírito, como ele gosta de dizer. Não precisamos mais de líderes sem coração. Já bastam os que temos hoje. Que tenhamos alguém que, em meio a essa barbárie, ainda nos faça sorrir. E isso é um ato de resistência, como nos ensinou Paulo Gustavo.

*Mirticeli Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália e é colunista do Dom Total, onde publica às sextas-feiras

Fonte: Dom Total