Religião

Quando o espírito nos arrasta

Quando o espírito nos arrasta.

Reflexão do Evangelho de Mc 1,12-15 no 1º domingo da Quaresma

É preciso sair dos limites conhecidos; sair de nossas seguranças para adentrar-nos no terreno do incerto

É preciso sair dos limites conhecidos; sair de nossas seguranças para adentrar-nos no terreno do incerto (Kyle Cottrell / Unsplash)

E imediatamente o Espírito impeliu Jesus para o deserto… (Mc 1,12)

É um privilégio iniciar este tempo litúrgico, intenso e forte, chamado tempo quaresmal, deixando-nos “arrastar” pelo mesmo Espírito de Jesus. Tempo único que nos oferece a possibilidade de fazer uma estratégica parada, de buscar o deserto em meio ao cotidiano, de plantar os pés na terra firme do Evangelho e assim viver um compromisso transformador em nossa realidade.

Nesse espaço e nesse tempo de maior despojamento, podemos sair de nossas inércias, podemos deixar de lado nossas seguranças e comodidades para transitar por novas paisagens. Há muitos modos de fazer isso: assumir com seriedade esse momento, investir no cuidado interior, abster-nos do rotineiro para abrir-nos ao inesperado e surpreendente…

Enfim, Quaresma sempre indica um tempo especial, de crise-crescimento; hoje diríamos, de discernimento. E o que devemos discernir? Qual é o crescimento-maturação que o tempo quaresmal nos propõe?

O discernimento implica, em primeiro lugar, uma escuta atenta e uma profunda sintonia com o mesmo Espírito que atuava em Jesus, para fazermos opções mais evangélicas, a serviço da vida. É o Espírito, força de vida e amor, que nos conduz ao deserto para desintoxicar-nos de um modo de viver atrofiado, imposto por um contexto social centrado na busca de poder e prestígio, com seus inimigos mortais da competição, do consumismo, do preconceito e que, lentamente, envenenam nossa vida, instigando-nos a romper as relações de comunhão e compromisso.

É preciso, de tempos em tempos, sair de nossos espaços rotineiros e “normóticos”, deslocar-nos para os amplos espaços do deserto, lugar despojado de tudo, para ali viver de novo o encontro com a Voz e a Força que nos devolvem à vida, com outra inspiração. Ali, guiados pelo Espírito, teremos a oportunidade de aprofundar nossa relação com a Fonte do Amor que, depois, se expandirá numa nova relação com os outros e com a natureza.

Neste ano, a CF está centrada no tema do diálogo e o deserto quaresmal ajuda a limpar os canais de comunicação que estão obstruídos pelo excesso de gordura do nosso ego: auto-centramento, busca dos próprios interesses, vaidades. Sabemos que o diálogo implica um “descentramento”, uma saída de si, para escutar e acolher o outro na sua diferença. O diálogo entre diferentes nos humaniza. Aqui não há mais lugar para o julgamento, a suspeita, o fanatismo, a intolerância nas diferentes situações da vida: religiosa, social, política, cultural, racial. Dialogar é abrir-nos ao outro diferente, sair do nosso próprio mundo, criar vínculos com outras pessoas, conhecer seu modo de ser e pensar, multiplicando assim os pontos de vista, para enriquecer-nos humanamente, dilatar os horizontes, crescer pessoalmente.

Todo primeiro domingo da quaresma a liturgia nos conduz até o deserto, onde Jesus foi tentado.

Tradicionalmente, as tentações de Jesus foram interpretadas num sentido moralizante: costumava-se dizer que Jesus nos queria dar o exemplo de fortaleza para nos ajudar a superar nossas tentações cotidianas.

Tal interpretação não capta em toda sua profundidade o sentido das tentações de Jesus. As tentações não são tanto uma prova a superar quanto um projeto que deve ser discernido.

O que parece certo, teológica e historicamente, é afirmar que Jesus, depois do batismo, buscou o deserto para um tempo de discernimento, em oração, em solidão, diante do Pai que o proclamou seu Filho, sob o impulso do Espírito. De algum modo, teve de refletir e discernir sobre qual seria seu estilo de messianismo que deveria assumir para sua missão, em sua vida pública. É um tempo de confronto interior, de crise.

A crise põe à prova sua atitude frente a Deus: como viver sua missão e a partir de quê lugar? Buscando seu próprio interesse ou escutando fielmente Palavra do Pai? Como deverá atuar? Dominando os outros ou pondo-se a seu serviço? Buscando poder e sua própria glória ou a vontade de Deus?

As tentações são, pois, expressão da oferta de dois tipos de messianismos, dois projetos, duas lógicas que se opõem. Por um lado, está a lógica da autossuficiência, da segurança, a partir do centro, a partir de cima, um messianismo triunfalista, evitando conflitos com o poder político e religioso, alheio ao sofrimento do povo; uma lógica que supõe adaptação ao sistema, ser servido antes que servir.

E por outro, aparece a lógica da solidariedade, a partir da margem e da periferia da sociedade política e religiosa, a partir do povo, a partir de baixo, vivendo a filiação e a confiança no Pai, em gratuidade, num estilo de simplicidade e pobreza alternativo ao sistema, optando por servir antes que ser servido. Uma lógica de inclusão e de vulnerabilidade frente o sofrimento do povo, na linha do Servo de Javé e dos grandes profetas de Israel.

Cópia de Cópia de Cópia de Cópia de Cópia de Cópia de Cópia de Cópia de Cópia de Cópia de Cópia de CORRIDA (21)

Fruto da experiência batismal de sentir-se Filho e do discernimento do deserto, Jesus elege a lógica da solidariedade e do serviço, a partir dos últimos. Assim como foi “impelido” pelo Espírito ao deserto, Jesus se deixa conduzir pelo mesmo Espírito em direção às margens excluídas, às “periferias existenciais”.

A partir deste discernimento e opção, o messianismo de Jesus se manifesta como diferente daquilo que muitos esperavam em Israel. O fato surpreendente é que Jesus começa a falar e a agir a partir da margem geográfica, cultural, religiosa e econômica da Palestina: a Galiléia. Jesus rompeu com a família, afastou-se da vida normal que levava, iniciou uma vida itinerante e passou a viver a partir de um sonho: a utopia do Reino.

Vivendo no meio de uma realidade conflituosa, de exploração, de desintegração das instituições, de injustiças, Jesus, unido ao Pai, torna-se aluno dos fatos, descobre dentro deles a chegada da hora de Deus e anuncia ao povo: “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!” (Mc 1,15).

Ele vem realizar as esperanças do povo, despertadas e alimentadas ao longo dos séculos, pelos profetas. Com sua vida e sua palavra, Jesus interrompe o discurso dos especialistas sobre Deus. Ele não tinha uma instituição em que pudesse se apoiar; tudo brotava de dentro.

Enquanto todos tinham os olhos voltados para o centro (sobretudo para o templo de Jerusalém, onde era elaborado o saber que ia se expandindo até chegar à menor das sinagogas), Jesus revela sua presença nas periferias do mundo. A partir daí, todos nós também devemos dirigir constantemente o olhar para as “novas periferias”, lugar onde Ele continua nos convocando.

“O discípulo-missionário é um descentrado: o centro é Jesus Cristo que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias existenciais. A posição do discípulo-missionário não é a de centro, mas de periferias: vive em tensão para as periferias” (papa Francisco).

Quê significa “fronteiras geográficas e existenciais”? É preciso sair dos limites conhecidos; sair de nossas seguranças para adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do inquestionável para enfrentarmos o novo. É decisivo estarmos dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novos encontros, novas experiências. Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos enriquecer.

A vida está cheia de possibilidades e surpresas, inumeráveis caminhos que podemos percorrer, pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas, encontros, diálogos, aprendizagens, motivos para celebrar, lições que aprenderemos e nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples.

A periferia passa a ser terra privilegiada onde nasce o novo, por obra do Espírito. Ali aparece o broto original do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se um desafio ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida.

Texto bíblico: Mc 1,12-15

Na oração: Quaresma é tempo para desintoxicação existencial: feridas mal curadas, fracassos, modos fechados de viver, intolerâncias, legalismos e moralismos.

  • De quê você precisa se desintoxicar? De quê você precisa se alimentar ao longo deste tempo quaresmal?

*Adroaldo Palaoro é padre jesuíta e atua no ministério dos Exercícios Espirituais

Fonte: Dom Total