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Papa Francisco e as uniões civis homossexuais

O que o papa Francisco realmente disse sobre as uniões civis homossexuais?

Palavras do papa Francisco são um endosso à união civil, mas não significa que ele acredite que os casais do mesmo sexo devam ter permissão para se casar.
A mudança do papa no tom da Igreja e a preocupação sobre se mudou o ensino da Igreja
exacerbou a divisão existente entre os católicos que apoiam o papa e aqueles que se opõem.

Em um novo documentário – Francesco – que estreou em Roma no dia 21 de outubro, o papa Francisco parecia endossar uniões civis para casais do mesmo sexo pela primeira vez como papa.

Conforme retratado no documentário, o papa afirma “Os homossexuais têm o direito de ter uma família. Eles são filhos de Deus e têm direito a uma família. Ninguém deve ser expulso ou miserável por isso. O que precisamos ter é uma lei de união civil – dessa forma, eles seriam legalmente contemplados. Eu defendi isso”.

Após o lançamento do filme, surgiram dúvidas sobre a origem da citação, se as palavras do papa haviam sido manipuladas pela edição de vídeo ou por uma tradução incorreta, se eram novas ou simplesmente uma repetição do que ele teria dito antes e se esta declaração significava uma mudança no ensino da Igreja.

O papa Francisco ‘endossou’ as uniões civis?

As palavras do papa no filme são um endosso às medidas de proteção da união civil para casais do mesmo sexo, na medida em que Francisco expressou publicamente seu apoio a eles.

Todavia, como Francisco sempre disse, isso não significa que ele acredite que os casais do mesmo sexo devam ter permissão para se casar. Em várias ocasiões, o papa advertiu contra ameaças à instituição do casamento e descreveu o casamento como uma união “entre um homem e uma mulher”. Aceitar parentes homossexuais ou estabelecer uniões do mesmo sexo na lei civil, disse, “não significa aprovar atos homossexuais”.

No novo documentário, no entanto, ele expressa claramente uma abertura para tais proteções legais. Na verdade, o apoio do papa Francisco às uniões civis remonta aos seus dias como arcebispo de Buenos Aires, quando propôs as uniões civis como uma alternativa ao casamento gay, uma posição que reiterou recentemente, em 2017.

O papa Francisco foi mal traduzido?

Alguns comentaristas argumentaram que as legendas do filme de Afineevsky, que foram a tradução que a maioria dos jornalistas de língua inglesa usaram em suas reportagens, não foram fiéis ao que o papa Francisco disse no filme. A discrepância se resume ao papa Francisco se referindo a uma lei de “convivência civil” ou “coabitação civil”, que os críticos argumentam ser diferente do uso do termo “união civil” nos subtítulos.

A jornalista argentina Elisabetta Piqué (casada com nosso correspondente do Vaticano nos Estados Unidos, Gerard O’Connell) disse em uma entrevista que os dois termos são frequentemente usados alternadamente na Argentina quando se fala sobre leis. O arcebispo de La Plata, Argentina, disse o mesmo em uma entrevista.

Isso é ‘notícia velha’?

O papa Francisco realmente falou sobre proteções legais para casais do mesmo sexo que vivem juntos antes. Como Michael J. O’Loughlin da América relatou no dia 21 de outubro:

Antes de ser eleito papa, Francisco serviu como arcebispo de Buenos Aires e, nessa função, ele defendeu as uniões civis de pessoas do mesmo sexo em uma tentativa política do país de bloquear a lei do casamento entre pessoas do mesmo sexo. A Argentina legalizou o casamento homossexual em 2010, que o então cardeal Jorge Bergoglio chamou de “ataque destrutivo ao plano de Deus”. Mas em reuniões com outros bispos argentinos, o cardeal Bergoglio os exortou a apoiar as uniões civis como uma forma de manter o casamento distintamente heterossexual. Os bispos rejeitaram a ideia, mas um ativista LGBT na Argentina disse que o cardeal ligou para lhe dizer que apoiava pessoalmente a ideia de uniões civis.

Quando Francisco foi eleito papa em 2013, o diretor da agência de católica notícias da argentina negou que o papa tivesse apoiado as uniões civis.

No entanto, a declaração do papa “Eu defendi isso” no novo documentário parece afirmar que ele, de fato, apoiou essas proteções.

O papa também falou sobre uniões civis para casais do mesmo sexo em entrevistas em 2014 e 2017, mas nenhum dos dois é explícito em seu apoio como a declaração no novo documentário. Em uma entrevista de 2014 para o Corriere della Sera da Itália, o papa Francisco foi questionado se a Igreja poderia entender a abordagem da legalização das uniões civis. Francisco respondeu dizendo “O casamento é entre um homem e uma mulher”, traçando sua distinção usual entre casamento e união civil.

Francisco explicou que os estados “querem justificar as uniões civis para regular as diferentes situações de convivência, movidos pela necessidade de regular aspectos econômicos entre as pessoas, como os planos de saúde. Estes são acordos de coexistência de vários tipos, dos quais não posso listar as diferentes formas”.

Qual é sua resposta sobre a perspectiva da Igreja em tais acordos?

“Precisamos ver os diferentes casos e avaliá-los em sua variedade”. Um assessor de comunicação do Vaticano disse depois da entrevista de 2014 que o papa não pretendia que seus comentários fossem um endosso às uniões civis.

Em 2017, o papa concedeu uma entrevista do tamanho de um livro ao sociólogo francês Dominique Walton, na qual Walton perguntou sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O papa respondeu “Vamos chamar isso de ‘união civil’, em vez de ‘casamento'”. Francisco continuou “Nós não brincamos com a verdade”.

Alguns comentaristas, incluindo Joshua McElwee do National Catholic Reporter, interpretaram essas citações como significando que o apoio do papa expresso no novo documentário “não é uma novidade”.

No entanto, nas entrevistas anteriores, os comentários do papa podem ser interpretados como meramente explicando a resposta da Igreja à realidade legal das uniões civis. Esta nova filmagem mostra o papa expressando explicitamente apoio em dar aos casais do mesmo sexo as proteções legais que as uniões civis oferecem, consistente com seu apoio anterior a uma lei como bispo de Buenos Aires.

Os comentários no novo documentário são o primeiro apoio explícito do papa às proteções da união civil. “O que temos que criar é uma lei da união civil. Dessa forma, eles são legalmente contemplados”.

De onde veio essa citação?

Além dessas declarações anteriores, foram levantadas questões sobre se a entrevista que incluía imagens do papa Francisco dizendo que apoia as uniões civis fazia parte de uma conversa com o diretor do novo documentário, Evgeny Afineevsky, ou se veio de uma entrevista que o papa deu a Valentina Alazraki e que foi ao ar na Televisa.

Afineevsky disse a vários jornalistas que a citação sobre as uniões civis veio de uma entrevista que conduziu com o papa por meio de um tradutor, embora o diretor não tenha especificado quando a entrevista ocorreu.

Contradizendo Afineevsky, Antonio Spadaro, S.J., um dos assessores de comunicação mais confiáveis do papa e editor do jornal jesuíta La Civiltà Cattolica, afirmou que a cena era da entrevista de Alazraki. Alazraki disse ao New York Times que não se lembrava do papa fazendo esses comentários para ela.

“Não há nada de novo no documentário, porque é parte dessa entrevista”, disse o padre Spadaro à Associated Press quando questionado sobre os comentários do papa ontem.

“Parece estranho que você não se lembre”. Ninguém se lembrou, entretanto, porque essa parte da cena nunca foi ao ar.

McElwee, do National Catholic Reporter, comparou as gravações lado a lado e descobriu que a citação do papa sobre como os gays “têm o direito de fazer parte da família” foi incluída no documentário de Afineevsky, mas que a próxima frase do papa, da entrevista de Alazraki, repetindo que eles têm direito a uma família, mas que “isso não significa aprovação de atos homossexuais, nem de longe”, foi cortada.

A próxima linha do documentário de Afineevsky, expressando o apoio do papa às uniões civis, nunca foi publicada como parte da entrevista de Alazraki, o que levou alguns a questionarem se a Televisa editou essa parte da entrevista a pedido do Vaticano.

Como escreveu a repórter da Associated Press Nicole Winfield,

o Vaticano frequentemente edita o papa em transcrições oficiais e vídeos, especialmente quando fala sobre questões delicadas. Não ficou claro se o Vaticano também insistiu em ter a edição final como condição para a entrevista da Televisa.

O que também não está claro é por que o comentário explosivo nunca foi ao ar – e se o Vaticano esqueceu que permaneceu disponível em uma gravação nos arquivos do Vaticano, que foram abertos ao cineasta Evgeny Afineevsky.

A Televisa não confirmou que os comentários foram feitos durante a entrevista, mas o cenário do documentário é idêntico ao da entrevista da televisora, incluindo o fundo amarelo, uma cadeira no canto e a colocação ligeiramente descentrada da corrente da cruz peitoral de Francisco.

A transcrição oficial do Vaticano de 2019 dessa entrevista, bem como a edição oficial do Vaticano, não contém nenhum comentário sobre a necessidade de proteções legais para as uniões civis. A edição oficial inclui seus comentários sobre a necessidade de os gays se sentirem parte de uma família, como disse anteriormente.

Alazraki disse ao National Catholic Reporter em 22 de outubro que a Televisa estava analisando os clipes e não fez mais comentários. Mais tarde naquele dia, a Televisa divulgou um comunicado dizendo que a filmagem era parte da entrevista de 2019. Fontes próximas à empresa disseram ao The New York Times que o Vaticano havia removido a filmagem, que foi gravada por câmeras do Vaticano, antes de entregá-la à Televisa.

Paolo Ruffini, o prefeito do Dicastério para as Comunicações do Vaticano, viu o documentário de Afineevsky na íntegra e o elogiou. Ruffini não expressou publicamente preocupação com a inclusão ou edição da citação sobre as uniões civis.

Há rumores de que o Vaticano está preparando uma declaração para o final do mês de outubro sobre a polêmica, mas não publicou nada até o momento desta publicação.

Resumindo, a origem e a edição da entrevista foram seriamente questionadas. O que ainda está claro, independentemente de quando a entrevista foi gravada, é que esta é a primeira vez que esta citação do papa Francisco está disponível ao público e que onde ele apoia explicitamente as uniões civis homossexuais.

Isso muda o ensino/doutrina da igreja?

Os críticos da declaração do papa levantaram preocupações sobre as contradições aos ensinamentos anteriores sobre uniões civis. A maioria aponta para um documento de 2003 da Congregação para a Doutrina da Fé afirmando que “o respeito pelas pessoas homossexuais não pode levar de forma alguma à aprovação do comportamento homossexual ou ao reconhecimento legal de uniões homossexuais”.

Esse documento chamava o apoio dos políticos às uniões homossexuais de “gravemente imoral” e dizia que “o reconhecimento legal das uniões homossexuais ou colocá-las no mesmo nível do casamento significaria não apenas a aprovação de comportamentos desviantes, com a consequência de torná-los modelo na sociedade atual, mas também obscureceria os valores básicos que pertencem à herança comum da humanidade. A Igreja não pode deixar de defender esses valores”.

Naquela época, a Congregação para a Doutrina da Fé era dirigida pelo cardeal Joseph Ratzinger, que se tornaria Bento XVI, e estava a serviço do papa João Paulo II. Aqueles que falam que Francisco contradiz, assim como argumentam que ele se afastou dos ensinamentos dos dois últimos papas.

Mas o papa mudou o ensino da Igreja? Não no sentido de alterar qualquer doutrina oficial. No entanto, o papa Francisco está ensinando pelo exemplo sobre como ser mais acolhedor e respeitoso com as pessoas LGBT, recuando de uma interpretação do ensino da Igreja que alguns argumentaram que se encontra em oposição radical aos direitos civis LGBT.

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Existem diferentes níveis de ensino da Igreja – desde definições papais infalíveis de dogma e ensinos de concílios ecumênicos no topo, depois o ensino oficial do papa em encíclicas e, em seguida, uma série de outros atos, declarações e documentos do papa e do Vaticano. As entrevistas e os discursos não são documentos magisteriais oficiais, então a declaração do CDF de 2003 ainda permanece como a palavra oficial sobre se os católicos podem apoiar o casamento gay. Há, no entanto, espaço para a discordância sobre se a declaração de 2003 diz respeito a alguma proteção civil para relacionamentos LGBT ou apenas aqueles que os tratam como idênticos ao casamento.

O cardeal William Levada, que sucedeu ao cardeal Ratzinger como chefe da Congregação para a Doutrina da Fé, determinou em 1997 como arcebispo de São Francisco que, em resposta à legalização do casamento gay na cidade, isso estenderia os benefícios de saúde a outra pessoa que morasse com algum funcionário de sua arquidiocese, independentemente de seu relacionamento.

Dessa forma, os casais gays estavam cobertos pelos planos de saúde, assim como dois irmãos solteiros morando juntos.

Se o documento de 2003 proíbe a Igreja de cooperar com proteções para casais do mesmo sexo, o então cardeal Levada, mais tarde chefe do escritório de doutrina do Vaticano, se opôs ao ensino da igreja. Parece, então, que teria entendido o documento de 2003 como aplicável a casamentos, não a uniões civis. E parece que Francisco adotou uma abordagem semelhante, falando positivamente sobre as uniões civis, sem se preocupar com o fato de que tal endosso equivale à aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, ao qual ele continua a se opor.

Portanto, não, o papa não mudou o ensino da Igreja, mas certamente mudou o tom pastoral com que a Igreja aborda as questões LGBT. Foi essa mudança de tom que foi amplamente celebrada pela comunidade de católicos LGBT. Os católicos, incluindo os grupos de defesa Dignity e New Ways Ministry, celebraram a declaração sobre as uniões civis, mas não tinham ilusões de que a Igreja mudasse seu ensino sobre o casamento gay.

O que mais o papa Francisco disse sobre questões LGBT?

Além de suas várias declarações sobre as uniões civis, o papa adotou uma abordagem mais acolhedora para católicos LGBT. Outros exemplos incluem sua famosa declaração “Quem sou eu para julgar?” sobre padres gays, sua declaração este ano a um grupo de pais de crianças LGBT sobre o amor de Deus a seus filhos e sua declaração a Juan Carlos Cruz, um homem gay que é sobrevivente de abuso sexual, em que afirma que Deus o fez gay.

No novo documentário, as palavras do papa são acompanhadas da história de Andrea Rubera, um homem gay que adotou três filhos com seu companheiro. Rubera disse ao papa que queria criar seus filhos na Igreja, mas estava preocupado que sua família fosse rejeitada por ter dois pais. O papa não opinou sobre sua família, mas pediu-lhes que não tivessem medo de ir à Igreja. A família já faz parte de uma paróquia há três anos.

A mudança do papa no tom da Igreja e a preocupação sobre se mudou o ensino da Igreja exacerbou a divisão existente entre os católicos que apoiam o papa e aqueles que se opõem, especialmente nos Estados Unidos.

Vários bispos que já haviam criticado Francisco emitiram declarações se opondo aos novos comentários. O bispo Thomas J. Tobin, de Providence, Rhode Island, disse que “a declaração do papa contradiz claramente o que tem sido o antigo ensino da Igreja sobre as uniões do mesmo sexo. A Igreja não pode apoiar a aceitação de relacionamentos objetivamente imorais”.

O bispo Joseph Strickland de Tyler, Texas, outro oponente vocal do papa, disse em uma entrevista: “O que está sendo transmitido ao redor do mundo é a opinião do papa Francisco sobre isso, e acho que é confuso e muito perigoso”, acrescentando “que há forças do mal que adorariam destruir a Igreja Católica”.

O cardeal Seán O’Malley de Boston, principal conselheiro do papa, disse em um comunicado que Francisco “ensina forte e consistentemente que o casamento é entre um homem e uma mulher para o resto da vida e que este é o plano de Deus para ter e criar filhos”.

O “endosso das uniões civis pelo papa não é um endosso da atividade homossexual”, disse o cardeal, ao mesmo tempo que observou que Francisco está “muito ciente do sofrimento e da alienação de pessoas homossexuais, gays, que são rejeitados pela família e pela sociedade”.

“Nossa tarefa é mostrar às pessoas que as amamos e nos preocupamos com elas e que juntos podemos nos esforçar para ser pessoas melhores, mais generosas, mais corajosas e mais fiéis àquilo a que Deus nos chama Faz”, disse o Cardeal O’Malley.

*Colleen Dulle é produtora assistente de áudio e vídeo na América. @ColleenDulledulle @americamedia.org

Publicado originalmente em America Magazine.

Fonte: America Magazine/Dom Total

Traduzido por Ramón Lara