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China e Santa Sé: compreenda o acordo

China e Santa Sé: compreenda o acordo

China e Santa Sé: compreenda o acordo.
A um passo da renovação, o que implica essa reaproximação entre os dois Estados?
Papa conversa com bispos chineses em 2018, no Vaticano.

Foram poucas as vezes que o papa Francisco chorou publicamente. Um desses momentos aconteceu quando ele avistou, na praça de São Pedro, dois bispos chineses. O sínodo que tratava dos desafios da juventude, realizado em 2018, foi palco daquele encontro histórico. Dois prelados do país participavam, pela primeira vez na história, de uma assembleia de bispos. Autorizados por Pequim e com a bênção de Francisco, lá estavam eles. Era uma manifestação visível de que o acordo entre Santa Sé e República Popular da China (RPC), selado dias antes, entrava em vigor.

Dois anos se passaram. Nesta semana, o tema foi bastante explorado pela imprensa internacional, já que, em alguns dias, vence o prazo para a renovação do trato. Em setembro de 2018, as autoridades chinesas e vaticanas firmaram um acordo provisório, com duração de dois anos. Até o momento, as duas partes se manifestaram a favor do prolongamento do pacto.

O secretário de estado da Santa Sé, cardeal Pietro Parolin, sinalizou que, mais uma vez, as concessões recíprocas poderão acontecer na forma ad experimentum, ou seja, estarão sujeitas a revisão após um certo período. Tempo para contornar, mais uma vez, os curtos-circuitos que marcam a relação entre dois Estados.

Em que consiste o acordo?

A decisão não só abre portas para um eventual restabelecimento dos vínculos diplomáticos entre eles, que estão formalmente separados desde 1951, após a ascensão de Mao-Tse Tung, mas devolve ao papa a “soberania espiritual” sobre os membros da Igreja Católica. Até então, a autoridade do pontífice romano como líder máximo da instituição não era reconhecida por Pequim. Da mesma forma, o Vaticano não se conformava com as ingerências por parte do governo chinês sobre as estruturas eclesiais.

A reaproximação entre os dois países acontece através do consenso sobre a nomeação de bispos. Na prática, Pequim deve submeter seus candidatos ao episcopado à avaliação do papa, o que os impede de nomear líderes católicos sem essa consulta prévia. Diante das propostas, o sumo pontífice tem poder de veto integral. Ele tanto pode rejeitar quanto aprovar os nomes cogitados para assumir a função. Desde a expulsão do embaixador da Santa Sé do país, na década de 1950, isso não acontecia.

Com João Paulo II, alguns bispos patrióticos, que solicitaram o o reconhecimento de Roma, em segredo, tiveram seus pedidos acatados. No início do pontificado de Bento XVI, alguns bispos chegaram a ser nomeados pela Santa Sé com o apoio do regime. Mesmo assim, Pequim continuou empossando bispos sem o consentimento do pontífice, o que fragilizou, mais uma vez essa relação.

Como parte do atual acordo, Francisco também revogou as excomunhões aplicadas por seus predecessores e legitimou alguns bispos ordenados sem a permissão pontifícia. Pouco antes das tratativas de 2018, por exemplo, Vincent Guo Xijin, bispo de Xiapu, tinha sido preso pelo partido comunista. Saiu da prisão após concordar em se tornar bispo auxiliar da diocese que presidia, dando lugar ao bispo Vincent Zhan Silu, que acabara de entrar em comunhão com Roma.

Há dois anos, o então porta-voz da Santa Sé, Greg Burke, ao tratar do acordo, disse que “o objetivo era pastoral, não político”. E Parolin, em tom esperançoso, completou dizendo que, a partir daquele passo, todos os bispos chineses fariam parte da mesma Igreja e estariam em comunhão com o papa. Com isso, o diplomata quis dizer que a chamada “Igreja Patriótica”, criada em 1957, e fiel ao regime, e a “Igreja Clandestina”, alinhada ao papa e sem conchavos com o Partido Comunista, passariam a integrar uma só realidade. Ao menos, é o que se esperava.

A perseguição aos cristãos.

A República Popular da China reconhece, oficialmente, 5 religiões em seu território: catolicismo, protestantismo, budismo, taoísmo e islamismo. 38 milhões de pessoas professam a fé cristã no país, dentre as quais 12 milhões são católicas. O partido comunista permite que as pessoas escolham livremente a própria religião, mas controla todas elas. Em alguns casos, persegue os membros desses grupos. Em determinadas regiões do país, os chamados “cristãos clandestinos” estão na mira do regime e são proibidos de manifestar publicamente a própria fé.

Há alguns anos, em âmbito católico, fiéis foram isolados ou tidos como desaparecidos. E isso colocou em xeque a eficácia do pacto feito com o Vaticano, o qual foi duramente criticado pelo arcebispo emérito de Hong Kong, cardeal Joseph Zen, por exemplo. Além de não concordar com as concessões feitas pelo Vaticano, o religioso diz não confiar nas intenções do governo, o qual, segundo ele, usa o acordo como pretexto para exercer um domínio maior sobre a igreja.

Vale salientar que o acordo não sanciona as relações diplomáticas entre os dois países, o que impede a Santa Sé de interferir em outros assuntos por enquanto. Além disso, as notícias que reportam os ataques à liberdade religiosa, acontecem, muitas vezes, contra comunidades protestantes, não somente católicas.

Lembrando que o pacto, em primeiro momento, beneficia somente os católicos, e não permite que o papa exerça uma certa influência em questões alheias à nomeação de bispos. Para chegar a esse patamar, uma representação diplomática da Santa Sé deveria, em teoria, se estabelecer no território chinês. Querendo ou não, só essa medida daria um respaldo maior à instituição, já que o reconhecimento jurídico e público da Igreja Católica em determinados países é garantia, em primeiro lugar, da liberdade de culto.

A relação de outros pontífices com a China.

Muitos não levam em consideração que é a primeira etapa de um longo caminho, precedido por uma sequência de desencontros e tentativas frustradas de diálogo. Ao menos três papas tentaram promover esse degelo diplomático nas últimas décadas.

Paulo VI pediu que os bispos chineses participassem do Concílio Vaticano II, na década de 1960, mas teve a solicitação negada pelo regime. Anos depois, João Paulo II foi responsável por quebrar o silêncio. Em 2001, revelou publicamente que almejava “a superação das incompreensões do passado pelo bem do povo chinês”, mesmo que relutasse, pessoalmente, contra qualquer tipo de abertura por parte da Santa Sé. Foi seu sucessor, Bento XVI, quem abriu um canal oficial de reaproximação. Na famosa carta pastoral ao povo chinês, publicada em 2007, o papa emérito apontou o acordo sobre a nomeação de bispos como uma das saídas para resolver o impasse.

Recentemente, o decano do colégio cardinalício, Giovanni Battista Re, protagonizou uma troca de farpas com o cardeal Zen. Refutando as interpretações do bispo aposentado de Hong Kong, disse que “o plano para a realização de um trato sobre a nomeação de bispos já havia sido elaborado por Bento XVI”. Re afirmou ter encontrado nos arquivos da secretaria do Estado do Vaticano “um documento pronto” no qual o papa emérito teria ratificado a sua intenção.

Taiwan.

Outra situação bastante delicada envolve os laços que a Santa Sé mantém com Taiwan, considerada pela China continental uma “ilha rebelde e uma parte inalienável de seu território”. Há mais de 70 anos, o Vaticano é um dos 23 países – e o único na Europa – a reconhecer Taiwan como um estado. Romper as relações com o arquipélago é condição sine qua non, imposta por Pequim, caso a Santa Sé queira avançar oficialmente com a China popular. Recentemente, o Vaticano garantiu às autoridades de Taipé que o acordo com a RPC se restringe à esfera religiosa e não ameaça a manutenção do acordo com a Ilha Formosa.

*Mirticeli Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália e é colunista do Dom Total, onde publica às sextas-feiras.

Fonte: Domtotal

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