Religião

A Igreja Católica sabe ler os sinais dos tempos?

A Igreja Católica sabe ler os sinais dos tempos?

A igreja católica, usa sua fé é coragem para encarar um futuro, mas também coragem para viver o hoje.
Nesse tempo, a fé cristã é convidada a conviver com o diferente, a aceitar as pequenas narrativas e a rever seus parâmetros de julgamento.

O olhar religioso para o tempo moderno-contemporâneo não raras vezes foi marcado pela desconfiança.
Não faltam críticas contumazes, mordazes e ácidas ao mundo extramuros da Igreja.
Depois de duas guerras mundiais, depois do nazismo e do stalinismo, do acirramento do capitalismo neoliberal, enfim, depois de o mundo ter dado provas de que as promessas da razão, a pretensão de onipotência da tecnologia e da técnica são falíveis, não resta muito a fazer, senão criticar.

Assim diriam muitos: os intentos modernos fracassaram, mas a Igreja já tinha avisado.

Mas esse sobreaviso ainda se estendeu mais pesadamente sobre muitos outros aspectos.
A preocupação da Igreja estaria enraizada na descristianização da vida. O “esclarecimento” era uma ameaça para a fé; a secularização sobrelevava-se cada vez mais.
E nossos tempos foram vistos como tempos de crise de valores morais.
Daí a tão famosa e repetida frase: estamos vivendo não uma época de mudanças, mas uma mudança de épocas ter sido usada tantas vezes, não para expressar uma mudança de paradigma existencial, mas para falar, em tons moralistas, da perda de valores.

Diante da mudança de época, as leituras da conjuntura vieram, muitas vezes, acompanhadas de uma paixão pelo passado e de uma suspeita diante do presente ou do futuro. O mundo de hoje ficou caracterizado como o tempo da queda das utopias, do fim das certezas.
Reinaria agora a pluralidade; teriam acabado as hegemonias. Haveria abundância de meios, escassez de fins.
Haveria uma crise profunda das tradições, das instituições, da memória, das grandes narrativas.
Viver-se-ia agora a tirania do provisório e o vazio do sentido.
Sentiríamos depois de todo esforço, agora mais do que nunca, o peso da solidão, mesmo multiconectados.

E Deus? Ele teria perdido seu espaço diante da crescente profanidade do mundo. O ateísmo e o agnosticismo seriam reflexos disso.

A realidade continua em mutação, o tempo continua a passar e com a informação em rede e a velocidade de tudo, uma nova categoria para dizer esse tempo, surgiu: tudo é líquido – a modernidade, o amor, a vida mesma.
O temor e a suspeita, entretanto, esses não se desfizeram ainda, continuam bem sólidos.
Haveria um cansaço relevante de ser humano, um descrédito cada vez mais amplo diante da vida e de seu valor, uma descrença de toda esperança, como se elas representassem, mais cedo ou mais tarde, o motivo de toda frustração.

Longe de invalidar essas críticas e análises de conjuntura tão importantes e fundamentais, atrás das quais podemos, inclusive, enfileirar outras tantas, faz bem perguntar: onde estão aquelas características que valem a pena recolher?
Aquelas que são elogiáveis, valorizáveis, fonte ainda de esperança? As análises de conjuntura se concentram só nos aspectos negativos?

No evangelho de Lucas, encontramos: “Sabeis discernir o aspecto da terra e do céu.

Como é que não sabeis discernir o tempo presente?” (Lc 12, 6). Isso mesmo.
Se a nossa avaliação do tempo presente é marcada pela desconfiança e pela decepção, não somos verdadeiros profetas, pois descuidamos da esperança.
Se nos fiamos no intelectualismo que desfia apenas críticas e tomamos os sinais dos tempos apenas por seus aspectos negativos, logo, nossa leitura é deficitária e não avaliamos bem o estado das coisas.
Discernir é, aliás, um verbo que poderíamos fazer deslizar numa cadeia significante, rica de sentido: saber escutar, entender, avaliar, comprometer-se.

O Concílio Vaticano II elabora assim: “Para cumprir sua missão, a Igreja, a todo o momento, deve escutar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, de tal modo que possa responder, de maneira adaptada a cada geração, às interrogações ternas sobre os significados da vida presente e futura e de suas relações mútuas.
É necessário, por conseguinte, conhecer e entender o mundo no qual vivemos, suas esperanças, suas aspirações e sua índole frequentemente dramática” (A Igreja no mundo hoje- GS 4).

Os verbos utilizados aí, chamam a atenção. Primeiro escutar (a todo momento!).

É preciso, pois, ter os ouvidos afiados para os sinais dos tempos.
A propósito disso, chama a atenção uma mudança de sentido. Jesus convida a ver os sinais dos tempos (“quando vedes”). Ver e discernir.
A Igreja convida a escutar.
Não temos que pôr os sentidos em oposição, pois sabemos bem que nosso acesso ao mundo, à realidade circundante, depende profundamente tanto da visão quanto da audição. Entretanto, o convite de Jesus parece estar mais vinculado a uma autonomia (discernir!), o da Igreja se vincula à obediência (ob-audire: escutar).
Resta saber se a utilização dessa palavra se refere à escuta da qual depende a fidelidade, ou à obediência à interpretação magisterial.

Ou se são as duas coisas muito bem amalgamadas.

O Evangelho é o critério de interpretação. É, pois com a inteligência da fé, esse saber ler dentro, que somos convidados a responder ao mundo presente.
Se a morte e a ressurreição de Cristo são a chave para a leitura, uma atenção demasiada para as cruzes, sem apontar para a ressurreição é leitura frágil.
Daí se pode tirar um critério bastante oportuno: sem dignificar de modo algum o sofrimento, sem substancializar realidades sofridas ou ignorar o processo dificultoso de passar da morte à ressurreição, não se deve jamais negar a esperança da fé.

Em toda crise, diria um grande teólogo, há uma oportunidade de crescimento.

As interpretações devem evitar também a heresia tão comum ao mundo católico atual: a de monismo cristológico .
A morte e a ressurreição de Jesus são acontecimentos em que toda Trindade está envolvida.
Também nas interpretações ela deveria estar mais implicada.

É preciso também conhecer o mundo, saber lê-lo; suas esperanças, suas aspirações, mas também sua índole frequentemente dramática, diz o texto da Gaudium et Spes.
Aqui chama a atenção esse “frequentemente dramática”.
A índole do mundo é essa? Nós sabemos que a experiência humana é muitas vezes traumática, marcada pela dor.

Sabemos também que a realidade é muitas vezes injusta e nós nos vemos atravessados por experiências que fazem colapsar nossos sentidos, não raras vezes.
Então, poderemos dar razão a essa expressão levando em conta que “frequentemente” não é sempre.
Apesar dessa obviedade, não é isso que fica claro, sobretudo, porque ao falar da índole do mundo e da época atual, abre-se pouco espaço para aquilo que é dom.

O binômio dom-tarefa fica desequilibrado.

Há muito o que se fazer, mas pouco a agradecer? Com isso, o acento está todo no aspecto do fazer cristão (o faciendum), típico da teologia do segundo paradigma da evangelização: transformar a realidade, “libertar a liberdade”, fazer.
Isso é importante, mas também é fundamental experimentar a liberdade da acolhida, a graça do amor, a mística do instante, a atenção como oração, para surpreender o Deus que continua a falar já.
Seu Espírito continua atuante também na contemporaneidade e sua graça está presente também nesse tempo.

Afinal, esses dois sentidos, o acolher e o fazer, estão subentendidos quando dizemos que “a criação inteira geme e sofre as dores de parto” (Rm 8,22).

O método “ver, julgar e agir” (e também celebrar) serve muito bem à interpretação da realidade.
Segundo o documento de Aparecida, ele “permite articular, de modo sistemático, a perspectiva cristã de ver a realidade; a assunção de critérios que provêm da fé e da razão para seu discernimento e valorização com sentido crítico;
e, em consequência, a projeção do agir como discípulos missionários de Jesus Cristo” (DA, 19).
Mas as interpretações sistemáticas são muitas vezes intelectualistas e a crítica é tão sintomaticamente negativa que, depois de tanto criticar, restam poucas forças para fazer. Os efeitos psicológicos da crítica muito negativa não são desconhecidos:
ao invés de iluminar caminhos, fazem os olhos ficarem turvos de tanta tristeza.

Qual é o caminho, então, a ingenuidade, a tolice, o otimismo bobo? O recurso não é negar a realidade, mas olhá-la mais fundo.

Se “todo deserto esconde alguma fonte em algum lugar” (S. Exupéry), longe dos otimismos tolos, não convém também uma crítica enviesada, pois dificilmente se poderá construir algo a partir dela, mesmo que ela carregue o nome de crítica construtiva.
Talvez toda coragem careça mesmo de uma certa dose de ingenuidade; essa que a todo custo queremos excluir, inclusive com muitas análises.

A Revelação de Deus concluída na comunicação total de si mesma a partir de seu filho Jesus Cristo segue ainda continuada pela ação do Espírito.

O Espírito continua a nos remeter ao Filho de Deus e trabalha para fazer seu rosto aparecer no rosto de cada um de nós.

Portanto, a humanidade, com todas as suas fragilidades, com todas as suas fissuras, ainda é um lugar onde Deus se manifesta, onde ele mesmo pode se dizer e se diz. Essa condescendência de Deus nem sempre é facilmente visível, porque a dificultamos muito, especialmente com nossa injustiça.
Embora dificultada, o Espírito da liberdade não se deixa aprisionar e ainda continua nos remetendo ao amor e à fraternidade, às vezes, a partir de lugares inimagináveis e através de meios que confundem a nossa sabedoria.
Por isso mesmo, avaliar os sinais dos tempos, pede ouvidos bem afiados, mas também olhar sensível, empatia.

Não olhar voltado apenas para o futuro, mas para o agora, para aceitar e amar o tempo presente.

Já que os referenciais sobre os quais a tradição cristã sempre se assentou foram postos em xeque e a modernidade e a contemporaneidade colocaram tudo em mudança, ao invés de apenas nos prender aos desafios que isso promove, como o desafio da multirreferencialidade, a fé cristã é convidada a “conviver com o diferente, a aceitar as pequenas narrativas, a rever seus parâmetros de julgamento”.
Fazendo coro à catequeta brasileira Solange Maria do Carmo e ao catequeta francês Denis Villepelet, podemos nos abrir ao tempo presente e acolher, sem abandonar a crítica, o que esse momento histórico nos apresenta.

Assim sendo, a exigência de viver o presente e de desfrutá-lo, a desrealização do espaço promovido pelo mundo virtual, a primazia da tela, a psicologização do social, a complexidade social, a própria multirreferencialidade, o desejo, nada disso é mal em si mesmo.

Esses dois catequetas não se perdem em críticas ao individualismo, ao subjetivismo, ao abandono da comunidade, ao esvaziamento de sentido, à liquidez da modernidade. Antes, reconhecem obstáculos, mas recolhem o que há frutuoso em nossa época; leem os sinais dos tempos e notam como, na realidade, já se encontra a graça.

Se há o subjetivismo, por exemplo, é preciso antes afirmar a importância da interioridade, condição de sobrevivência.

E por que não falar em personalização da fé, destacando o conceito de experiência? Ou de uma evangelização mais voltada para ação do Espírito?
Esta “não possui muitos entraves institucionais nem o peso da utopia de um mundo melhor a ser construído”.
Muito presos a tantos entraves, com uma índole frequentemente presa ao passado, amarrados a idealizações de um tempo de outrora, ou presos às nossas síndromes de onipotência, podemos esquecer o que está na nossa frente.

É muito diferente do que faziam os judeus, diante de Jesus? Presos às tradições, ou presos ao Messias que viria, não conseguiam ver o Messias presente, o inesperado.

Há, na realidade outro binômio incontornável para se falar dos sinais dos tempos.
Ele se lê na Gaudium et Spes: “O futuro está nas mãos daqueles que souberem transmitir para as gerações de amanhã razões de viver e de esperar” (GS, 31).

Certamente, transmitir razões de viver e esperar não é pouca coisa, mas se ler os sinais dos tempos faz nossos olhos se dirigirem só para o que devemos esperar e para o que devemos construir, podemos recolher, assim, as razões de viver, mas adiando-a indefinidamente para depois e só depois.

Se ler os sinais dos tempos é, por outro lado, uma maneira de perceber que há razões para ter esperanças e que essas razões já estão presentes agora e devem ser percebidas, acolhidas e alimentadas desde já, então teremos compreendido que a fé é coragem para encarar um futuro, mas também coragem para viver o hoje.

*Eduardo César é presbítero da Diocese de Uberlândia.
Formado em Filosofia pela PUC-MG Uberlândia e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE).
É graduando em psicologia pela Faculdade Pitágoras de Uberlândia e em formação em Psicanálise.

Fonte: Dom Total

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