Religião

Uma história sobre dois papas Francisco

Uma história sobre dois papas Francisco.

Como poderia brotar tanto coração e tanta falta de coração no mesmo homem em uma semana?
Para aqueles de nós marginalizados por essas doenças dentro da igreja institucional, o sofrimento da Semana Santa não deu lugar à esperança da Páscoa.

Para aqueles de nós que buscam esperança em nosso mundo e em nossa Igreja, a semana passada foi o melhor e o pior de todos os tempos. É uma história de dois papas Francisco.

Um Francisco foi o papa da pandemia, inspirando esperança em palavras e ações.

Suas ofertas eram pequenas e agradáveis, como seus bate-papos pelo Skype, mas também eram grandiosas e poderosas, como se estivesse sozinho em um palco iluminado por uma figueira na Praça de São Pedro, liderando o Caminho da Cruz na sexta-feira, sua presença tocou e confortou milhões.

Francisco também apareceu em uma entrevista na revista Commonweal na semana passada, descrevendo como ele orando mais do que o habitual e refletindo sobre como pode estar mais próximo do povo de Deus.
Ele compartilhou sua esperança de que abracemos a pandemia como um momento de metanoia que nos ajudará a “ver os pobres” e “contemplar o mundo e a natureza”, avançando para uma economia global mais humana.

Um Francisco foi o papa da pandemia.

O papa discutiu a necessidade da Igreja não se “fechar em instituições”, mas encontrar “a liberdade do Espírito” e assumir riscos no ministério:
Temos que aprender a viver em uma Igreja que existe na tensão entre harmonia e desordem provocada pelo Espírito Santo.
Se você me perguntar qual livro de teologia pode melhor ajudá-lo a entender isso, seriam os Atos dos Apóstolos.
Lá você verá como o Espírito Santo desinstitucionaliza o que não é mais útil e institucionaliza o futuro da Igreja.

Essa é a igreja que precisa sair da crise.

“Estou vivendo isso como um momento de grande incerteza”, diz Francisco à revista.
“É hora de inventar, é hora para a criatividade”. Mas a criatividade, aparentemente, tem seus limites.
E foi aí quando o outro Papa Francisco interveio.

Na terça-feira passada, o pontífice anunciou uma nova comissão para estudar a ordenação de mulheres ao diaconato.

Esta é a segunda comissão em quatro anos a responder à questão e está composta em sua totalidade por novos membros.

A primeira comissão, formada por Francisco em 2016 em resposta a um estudo de religiosas em sua reunião da União Internacional de Superiores Gerais (UISG), teve a tarefa de estudar se as mulheres serviriam como diaconisas na igreja primitiva.
Essa comissão, como o papa sugeriu, terminou em uma situação sem acordos.

Eles emitiram um relatório ao papa, que foi entregue à UISG em 2019. Desde então, o documento permaneceu escondido como um dos segredos de Fátima.

Essa nova comissão parece pronta para encontrar um consenso: que as mulheres não têm o direito de servir como diaconisas.
As breves descrições dos membros, oferecidos por Joshua McElwee, da NCR, e John Allen, de Crux, sugerem que poucos deles fizeram trabalhos acadêmicos sobre a história dos diáconos e que nenhum deles expressou a crença de que as mulheres já serviram em um diaconato igual aos homens no contexto da igreja primitiva.

Ao selecionar esses membros para a comissão, Francisco efetivamente matou a possibilidade de qualquer progresso real para as mulheres na Igreja.
Dado o tempo em que as mulheres foram convidadas a esperar com fé e esperança de ter a dignidade de seu trabalho reconhecida e elevada, essa mudança de eventos não é nada menos que cruel.

Igualmente decepcionante é o fato de que todo membro da comissão é europeu ou americano.

O papa voltou à questão das mulheres diaconisas em resposta ao documento final do Sínodo da Amazônia, que destacou o trabalho ministerial crucial e de alto risco das mulheres nessa região.
No entanto, o papa não escolheu ninguém das “periferias”, aqueles lugares em nosso mundo para os quais ele sempre está nos implorando para irmos.

Francisco foi igualmente desanimador na semana passada, quando o tribunal superior australiano reverteu a condenação do cardeal George Pell pelo abuso sexual de dois menores.
Pell foi um dos conselheiros mais próximos de Francisco, mesmo sendo ideologicamente rígido, homofóbico, amigo próximo dos ricos e poderosos da Austrália e um negador das mudanças climáticas, de acordo com um recente ensaio da NCR de Paul Collins.

Francisco permaneceu leal a Pell durante toda sua investigação legal, recusando-se a falar sobre seu caso ou tomar qualquer ação disciplinar até que todas as vias legais estivessem esgotadas.

Agora que sua condenação foi revertida, espera-se que o Vaticano suspenda qualquer investigação adicional sobre seu caso.

Durante sua missa diária, poucas horas depois do anúncio do governo australiano, o papa parecia aludir a Pell em suas orações.

“Gostaria de orar hoje por todos aqueles que sofrem sentenças injustas, devido à raiva [contra eles]”, rezou na liturgia transmitida ao vivo no mundo inteiro.

Logo após a missa, o pontífice pareceu reiterar seu argumento via Twitter:

“Nestes dias de #Quaresma, temos testemunhado a perseguição que Jesus sofreu e como Ele foi julgado ferozmente, mesmo sendo inocente”, escreveu Francisco.
“Vamos orar hoje por todas as pessoas que sofrem devido a uma sentença injusta por causa de alguém que a condenou”, afirmou (Tweet da conta do Papa Francisco no Twitter 7 de abril de 2020).

O papa ficou tão cego por sua raiva pelas angústias de Pell que não percebeu que tal oração e tuíte esfregariam sal nas feridas de inúmeras vítimas-sobreviventes de abuso sexual do clero e de suas famílias?

Os membros do Ending Clergy Abuse disseram em um comunicado que estavam confusos e consternados com a decisão do tribunal:

Dada a história de tais investigações no Vaticano, notoriamente escondidas em segredo.

E pela profunda lealdade e defesa que demostrou o papa sobre Pell, uma verdadeira e completa transparência do Vaticano pode parecer uma esperança condenada.

Hoje, o papa afirmou dramaticamente a inocência de Pell, sem parecer entender que o tribunal não estava decidindo sobre a culpa ou inocência do cardeal.

A breve declaração do Vaticano sobre o veredicto de Pell também poderia ter sido escrita com mais sensibilidade.
Em vez disso, deu a impressão de que o resultado foi um presente de Páscoa:
A Santa Sé, que sempre expressou confiança nas autoridades judiciais australianas, congratula-se com a decisão unânime da Suprema Corte sobre o cardeal George Pell, absolvendo-o das acusações de abuso de menores e revogando sua sentença.

Confiando seu caso à justiça do tribunal, o cardeal Pell sempre manteve sua inocência e esperou que a verdade fosse apurada.

Não sei ao certo se outros católicos seguem as notícias papais tão de perto quanto eu, mas Francisco estava com a cabeça virada ao avesso nesta Semana Santa. Como poderia brotar tanto coração e tanta falta de coração no mesmo homem em uma semana?

Alguns dias o papa exibia, com palavras proféticas e símbolos dramáticos, um acompanhamento radical aos aflitos, doentes e moribundos.
E outros dias, desconsiderava negligentemente os sentimentos de algumas das vítimas mais violentas da Igreja;

 E apagava o pequeno raio de esperança que as mulheres tinham sobre o seu futuro na Igreja.

Quase parece que a disposição de Francisco de correr riscos pelo sofrimento depende da fonte do sofrimento deles.

Aqueles que são feridos pelo mundo e pela sociedade – os pobres, os refugiados, os doentes, a Terra – o inspiram a oferecer uma mensagem corajosa de justiça e de transformação.

Mas aqueles que foram prejudicados pela Igreja – particularmente mulheres e vítimas de abuso sexual – ainda são abandonados, suas feridas são reabertas continuamente por um papa cuja aparente abertura à mudança lhes deu esperança de que, em breve, a justiça reine dentro de sua Igreja.

Sim, o coronavírus é devastador.

Mas a misoginia e o abuso sexual do clero também são pandemias. E essas pessoas continuarão furiosas muito tempo depois de termos uma vacina para o Covid-19.
Para aqueles de nós marginalizados por essas doenças dentro da igreja institucional, o sofrimento da Semana Santa não deu lugar à esperança da Páscoa.
Em vez disso, nos deixou a pergunta: “O verdadeiro Papa Francisco, por favor, que se levante?”

Traduzido por Ramón Lara

Fonte: Nathional Catholic Reporter/Dom Total