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O futuro do ensino católico sobre sexualidade e a família

O futuro do ensino católico sobre sexualidade e a família

Reconhecimento da realidade prática e conhecimento da regra para um discernimento pastoral

America

Muitos temas surgiram na recente conferência sobre teologia moral e “Amoris Laetitia”, mas, de acordo com Lisa Sowle Cahill, eticista e professora de teologia moral no Boston College, um ponto que se destacou foi “a lacuna entre o ensino recebido da Igreja e as experiências das famílias”.

Na conferência, que foi realizada na Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma, a Dra. Cahill focou nesta discrepância entre ensino e experiência em seu artigo para a conferência, que foi intitulado “Complexidade das Relações Familiares: Realidades Sociais, Dilemas Pastorais, Compreensão Moral”. (Seu texto, como os de outros palestrantes, será eventualmente publicado em um livro decorrente da conferência.)

A Dra. Cahill falou sobre o assunto não apenas como uma teóloga moral, que, em suas próprias palavras, “tem um interesse especial na igualdade de gênero, na diversidade de culturas e perspectivas na Igreja Católica global”, mas também como uma mulher casada e mãe de cinco filhos.

Em uma entrevista com a América, realizada durante a conferência, reconheceu que nos ensinamentos da Igreja em décadas passadas podem ser vistas “ideais muito rígidas e estáticas em que faltam algumas das coisas boas que estão acontecendo na vida dos casais e famílias”. Falando de sua experiência de décadas de vida conjugal, disse: “Vejo que as famílias podem envolver luta; há dor, há decepção. Mas em tudo isso ainda há sobrevivência, há amor, há laços familiares, e acho que esse é o ponto de vista original de ‘Amoris Laetitia'”.

Cahill observou que “a Igreja no passado tendia a olhar para a irregularidade ou para o pecado ou aquilo que não é aceitável”. “Amoris Laetitia”, em contraste, “é sobre fidelidade autêntica, coragem, perseverança, fidelidade real e autenticidade que ainda está presente nas famílias”.

O Papa Francisco “frequentemente dá entrevistas ou faz comentários improvisados que às vezes são muito impressionantes”, disse Cahill, acrescentando que ficou “realmente impressionada” com o que disse sobre acompanhar pessoas transgênero durante uma entrevista coletiva em um avião, quando voltou da Geórgia em 2 de outubro de 2016. Mas a Dra. Cahill diz que acredita que suas “observações podem ser aplicadas de forma mais ampla”.

O Papa enfatizou que “nem todos os casos são iguais, mas temos que acompanhar, temos que discernir, temos que integrar, temos que aprender, e é isso que Jesus faria hoje”.

“Acho que essa atitude: ‘O que Jesus faria?’ é a marca registrada de ‘Amoris Laetitia'”, disse Cahill. A doutora vê esse critério para aplicar o ensino da Igreja sendo replicado na conferência, mas também o viu refletido nos últimos anos; diz que viu “uma perspectiva de mudança” tanto no Instituto João Paulo II para o Matrimônio e a Família quanto na Pontifícia Academia para a Vida. Isso está acontecendo, apontou, “mantendo-se dentro da tradição católica, é claro, e sendo fiel a esses valores”.

“Há uma ampliação de perspectiva e uma aumento das conversas que inclui não apenas temas como o casamento e a família no sentido tradicional, mas também na abertura para indivíduos LGBTQ e suas famílias e o reconhecimento de que também já fazem parte da Igreja”, continuou o Dr. Cahill. “Não é que a Igreja deva alcançar; eles estão aqui.”

A doutora observou que essa “ampliação da conversa” é algo que se desenvolveu em “um movimento dentro da Igreja do Vaticano II”, após a publicação da “Humanae Vitae” de Paulo VI e da “Veritatis Splendor” de João Paulo II e uma subsequente “alienação que surgiu em muitas situações culturais entre a Igreja docente e as realidades das pessoas que vivem suas vidas em famílias”.

A Dr. Cahill disse que “às vezes houve a suposição, talvez até do Papa Francisco em ‘Amoris Laetitia’, de que todas essas famílias são muito oprimidas pelos ensinamentos da Igreja, estão com dor e querem mais espaço”. Mas, como apontou, “o que você vê em muitos países, como os Estados Unidos, a Austrália, e na Europa Ocidental, é uma alienação das gerações mais jovens. Eles não estão realmente com dor porque estão desconsiderando o que a Igreja tem a dizer”.

A acadêmica citou a chamada cultura de conexão e “o ethos sexual muito livre” em muitos campi universitários como um exemplo de um desenvolvimento negativo.

A Dra. Cahill enfatizou, no entanto, que “isso não significa que precisamos voltar ao ensino sexual católico pré-Vaticano II, ou mesmo ao ensino moral da era do Vaticano II. Em vez disso, o que precisamos hoje é uma perspectiva sensata e cristã sobre relacionamentos que sejam viáveis no mundo em que vivemos”.

Mas para conseguir isso, falou: “Acho que mais uma conversa deve acontecer entre o ensino oficial da Igreja e seus intérpretes, e o suposto público para o qual o ensino é dirigido, reconhecendo que não é apenas um público limitado a membros complacentes da Igreja e que é importante ouvir várias vozes”.

A doutora concordou que, com a publicação de “Amoris Laetitia”, o Papa Francisco abriu uma porta para pastores, teólogos morais e católicos em geral para dar uma nova olhada em todas as questões humanas à luz do Vaticano II.

Parte dessa atitude pós-conciliar se reflete na humildade pessoal do Papa Francisco nos documentos oficiais. “Aprecio que o Papa Francisco frequentemente use a primeira pessoa mesmo em documentos oficiais: ‘É isso que eu penso’”, acrescentou. “Há uma humildade nisso e um convite para participar da discussão.”

Em “Amoris Laetitia”, Francisco “faz um retorno radical a uma ideia antiga, mas a revive no contexto de hoje. O Papa pega a ideia de Tomás de Aquino de que todo conhecimento moral é conhecimento prático e que sempre surge em um contexto”, disse Dr. Cahill. “Mas o discernimento do que o contexto exige é necessário antes que o conhecimento seja autêntico e verdadeiro. E assim, no capítulo 8, cita Tomás de Aquino ao dizer que se você pode ter conhecimento de uma regra ou conhecimento de uma realidade prática, é o conhecimento da realidade prática que é mais importante do que o conhecimento da regra em termos de fazer um discernimento correto, um discernimento autêntico, do que é necessário em uma situação”.

“Isso não é algo que o Papa Francisco acabou de inventar”, disse Cahill. “Volta à tradição. Mas apresenta um desafio bastante significativo e fundamental para as suposições que muitas pessoas têm sobre o que é a teologia moral e como ela funciona, e também como, no nível prático, surge o conhecimento do que é certo e errado.”

“Não é que as regras não sejam mais importantes”, disse, referindo-se aos ensinamentos de “Amoris Laetitia”. “Mas têm que ser constantemente testados à luz das realidades e regenerados, reenergizados, reformulados, reapropriados à luz da experiência. Para mim, isso é realmente enorme!”

“Acho que quando a exortação pós-sinodal foi lançada, algumas pessoas realmente reconheceram” uma mudança radical na teologia moral, acrescentou o Dr. Cahill. “Mas outros disseram: ‘O Papa Francisco não está dizendo nada de novo, mas radical’, e muitas das reportagens da mídia sobre a exortação não entenderam isso, disse o Dr. Cahill. “Isso causou consternação em alguns setores e, portanto, há resistência.”

Cahill concluiu expressando a preocupação de que, à medida que conferências como esta proporcionam uma apreciação mais profunda e completa da “Amoris Laetitia” e seu impacto na teologia moral e na vida das pessoas, há resistência e o perigo de “uma luta pelo poder entre duas ortodoxias, uma velha guarda que está sendo derrubada; e um novo centro de poder que agora vai surgir e assumir.”

A doutora disse que “seria realmente lamentável” se isso acontecesse. Ela espera que ambos os lados “tentem criar o espaço amável que não temos agora, que é o espaço do diálogo, e perceber que a teologia não está tentando ser o magistério. Não vemos nossas próprias opiniões como definitivas e nunca além da revisão”, acrescentou o Dr. Cahill. “Você sabe que nós mudamos nossas ideias. Eu certamente tenho e muitos têm nas últimas décadas. Então, se pudéssemos criar mais um clima de questionamento compartilhado e respeito mútuo, seria ótimo. Mas talvez eu esteja esperando pelo reino de Deus.”

A acadêmica está preocupada, no entanto, que o debate na teologia moral “às vezes seja como a política na América, onde há polarização, e um lado não quer ouvir o outro. Não é que você tenha que dizer que ambos os lados são iguais.”

Falando de sua própria experiência, disse: “Tenho opiniões muito fortes sobre a igualdade das mulheres, a aceitação de pessoas L.G.B.T.Q. na Igreja, uma visão mais flexível e de baixo para cima das normas sexuais e normas de gênero, mas não sinto que sou chamado a condenar pessoas que vêm de outra experiência, que estão lutando para encontrar sua própria voz e encontrar maneiras de expressar seus próprios valores de uma nova maneira. Acho que ainda temos que estar em consulta.”

Cahill se alegrou ao ver “uma nova sensibilidade e uma abertura para uma discussão diferente ganhando terreno e se expandindo” na conferência. Também expressou a esperança de que essa discussão mais ampla possa se firmar em nível internacional entre os católicos, porque “muitas vezes nossos debates são tão centrados na Europa, nos Estados Unidos e no Ocidente”, e nem todos os assuntos discutidos são necessariamente questões de preocupação para os africanos, que são uma parte crescente da Igreja.

“Eu só acho que a Igreja global tem que estar muito mais no horizonte”, acrescentou. Ao mesmo tempo, disse que isso “torna o trabalho do Papa Francisco muito mais complicado. Porque quando você começa a olhar para a diversidade global, as normas sobre família e gênero também são muito diversas e não necessariamente de acordo com ‘Amoris Laetitia'”.

Cahill observa que as pessoas “muitas vezes dizem: ‘O Papa Francisco precisa mudar as regras para o que é a realidade'”. O sínodo demonstrou claramente que nem todas as mudanças que estivesse disposto a fazer seriam aceitáveis nas sociedades de onde vêm os cardeais africanos, ou mesmo alguns dos outros cardeais.

“Então, Francisco tem uma tarefa muito assustadora de fazer um grande avanço sem derrubar o barco que está dirigindo muito para um lado ou para o outro e sem jogar as pessoas ao mar”, continuou Cahill. “Ele tem que ser um líder para toda a Igreja e, sem ser paternalista, tem que tentar manter a família unida.”

Traduzido por Ramón Lara

Dom Total