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Corpus Christi, corpos de Cristo

Corpus Christi, corpos de Cristo

Instituída na Idade Média pelo Papa Urbano IV, a solenidade católica enfatiza a presença real de Jesus no pão e no vinho da Eucaristia

Élio Gasda*

“Corpus Christi”, expressão de origem latina que significa Corpo de Cristo. Instituída na Idade Média pelo Papa Urbano IV, a solenidade católica enfatiza a presença real de Jesus no pão e no vinho da Eucaristia.

A celebração é um preceito que todo católico deveria participar. É recomendado que o bispo da diocese não se ausente (Cân.395 SS3). Porém, fomos surpreendidos por uma notícia do Vaticano: “Devido às limitações impostas ao Papa pela gonalgia e às necessidades litúrgicas específicas da celebração, a Santa Missa e a Procissão com a Bênção Eucarística não serão celebradas por ocasião da festa de Corpus Christi”. Um escândalo? Para os mais piedosos, talvez. Contudo, pode ser uma oportunidade que Papa Francisco, o bispo de Roma, ofereça para refletir sobre Corpus Christi.

A festa de Corpus Christi não é um show. Não se pode restringir a solenidade às celebrações das missas, às procissões e seus belíssimos tapetes, uma tradição no interior do Brasil e nas cidades históricas mineiras. Juntamente com a teologia implícita na liturgia, é preciso celebrar os corpos dos seres humanos que abrigam, contemplam e se alimentam do pão e do vinho em Memória de Cristo. Ele mesmo ordenou aos seus amigos discípulos na última ceia. “Este é o meu Corpo… Isto é o meu Sangue… fazei isto em memória de mim” (Mt 26,26).

É a festa do corpo! Cristo se faz corpo humano! Fez de todo corpo humano um corpus Christi. Jesus não era inimigo do corpo! Viveu sua corporalidade sem medo, tabus ou vergonha. Amou, acolheu e curou todos os corpos. Nos corpos que sofrem Ele permanece presente. Festa do pão e do vinho, frutos da terra e da comunhão de todos os seres. Toda “a casa comum” é Corpo de Cristo, Alfa e Omega da criação!

A festa de Corpus Christi não se presta a alimentar devocionismos desvinculados da encarnação. Celebrar, mas na presença real de Jesus na história, no corpo do irmão que sofre nas periferias da vida. A Eucaristia é o “eis-me aqui Senhor” (Isaias 6,8) diário, ato concreto de corpos que se dedicam a aliviar a dor do outro e as dores do mundo. Jesus é o Pão da Vida que a todos salva (João 6,56). Alimentar-se do seu corpo é comprometer-se com a vida do próximo, sem ninguém excluir, assim fez Jesus.

Como os cristãos vivem sua fé na Eucaristia? Com quem e como a vivem? O que os outros esperam do cristão que comunga da Eucaristia? Quando o individualismo toma de assalto a fé, o primeiro objetivo é salvar a si mesmo. Vigora a indiferença diante dos corpos que tombam. Tombam com o descaso de governos genocidas que propagam violência, com as doenças, a fome e a pobreza.

O desgoverno transformou o Brasil em terra sem lei. São tempos de destruição. Que importância têm os corpos carregados pelas águas das enchentes ou soterrados pela lama tóxica das mineradoras? Quem se importa com os corpos de Cristo assassinados na favela, nos conflitos no campo, nas guerras? Ou com os corpos vítimas do racismo e da xenofobia, do feminicídio e da homotransfobia? Que importância tem o desparecimento dos corpos dos indigenistas Bruno Pereira e Dom Phillips? Os corpos torturados de Moise Kabagambe e Genivaldo de Jesus ainda clama por justiça.

Em sua corporalidade Jesus caminhou no meio de puros e impuros. Esteve entre homens e mulheres e se deixava acariciar (Lucas 7, 36-50). Jesus tocou os corpos e curou os doentes (Lc 17, 11-19). “Não nos devemos envergonhar, não devemos ter medo, não devemos sentir repugnância de tocar a carne de Cristo” (Papa Francisco), pois Ele se revelou de corpo e alma entre nós. Jesus que se transforma em alimento e se reparte para a vida do mundo, convida a todos a serem alimento para os famintos e abandonados, discriminados e rejeitados… Todos corpos de filhos de Deus! Corpo é lugar teológico, território sagrado, morada divina.

Somos corpo! Somos água, ar, terra. O universo! Somos espírito, somos ternura e amor. Nos humanizamos e nos relacionamos com Deus na corporeidade do outro, quando significamos “pão da vida” e levamos esperança e pão. E saciamos a sede de justiça de tantos corpos humilhados e invisíveis. Comungar o pão da eucaristia é aderir a Jesus e aos seus ensinamentos, deixar se transformar por Ele para comungar da vida de todos os outros corpos.

Chicos, Dorotthys, Marielles, Elizas, Pedros, Phillips e Brunos são Corpus Christi. Entregaram seus corpos em defesa da vida, da justiça, dos direitos dos indefesos. Corpos de Cristo Ressuscitado!

“Tornem-se o que vocês comem! Vocês comem o Corpo de Cristo, tornem-se Corpo de Cristo!” (Santo Agostinho).

Sejamos corpo de Deus.

Dom Total

*Élio Gasda é doutor em Teologia, professor e pesquisador na Faje. Autor de: ‘Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja’ (Paulinas, 2001); ‘Cristianismo e economia’.