Religião

As especulações sobre a renúncia de Francisco

As especulações sobre a renúncia de Francisco

Parte da imprensa italiana aposta na abdicação de Francisco em breve, mas amigos do pontífice garantem que isso está fora de cogitação

Francisco elogia Bento XVI ao dizer que ele abriu um precedente positivo, ao renunciar. Mas, por enquanto, isso parece não estar nos seus planos

Francisco elogia Bento XVI ao dizer que ele abriu um precedente positivo, ao renunciar. Mas, por enquanto, isso parece não estar nos seus planos (Tiziana Fabi/AFP)

Mirticeli Medeiros*

Em dezembro, o primeiro papa latino-americano da história completa 85 anos. E no auge da sua velhice, ele não parece muito disposto a deixar de trabalhar. Francisco é o pontífice que não tira férias. Na pausa de julho, que em teoria seria o período de descanso do atual pontífice, algumas de suas atividades são suspensas, mas ele não arreda o pé do Vaticano.

Os papas anteriores, durante o rigoroso verão europeu, transcorriam suas férias em duas etapas: no palácio pontifício de Castel Gandolfo, que fica nos arredores de Roma, e nas montanhas, ao norte da Itália. Quem começou com esse costume de deixar a região Lazio, onde está localizada a cidade de Roma, para driblar as altas temperaturas, foi João Paulo II, em 1987. E Bento XVI acabou adotando essa prática.

Como fiz questão de frisar em outros artigos, Francisco tem pressa. Ao assumir as vestes de papa reformador, uma missão que foi desempenhada por poucos ao longo da história da Igreja, ele sabia o quanto assumir esse papel seria exigente. E embora uma equipe de conselheiros o auxilie nessa empreitada, cabe a ele enfrentar, em primeira pessoa, todos os desafios próprios de um projeto desse porte. As perseguições e as tentativas de minar seu governo, muitas vezes travestidas de “zelo religioso”, vêm no pacote. É inevitável.

A resistência às reformas é histórica dentro do catolicismo, independente da motivação que as impulsione.

Em algumas situações, o próprio sumo pontífice se viu sozinho e sem apoios para realizar mudanças pontuais. João XXIII que o diga.

Gregório VII, no século 11, pretendia, na verdade, romper com um sistema inaugurado por Constantino (século 4) e reforçado pelo Carlos Magno (século 8), contra o qual nenhum papa, até então, havia se oposto. A reforma gregoriana – um termo que já foi superado pela historiografia contemporânea, justamente por se tratar de um movimento que perdurou por pelo menos 3 séculos -, cria um modelo de societas perfecta, que não se estruturava a partir de um Império, mas tinha a Igreja de Roma como referência. Por outro lado, do ponto de vista moral, a ideia era recriar uma espécie de Ecclesiae primitivae forma – a igreja em sua forma primitivaA reintrodução da regra de Santo Agostinho e a oposição à simonia são alguns dos elementos que vão ao encontro dessa proposta.

Claro que estamos em outro contexto, e seria anacronismo puro dizer que Francisco segue esse mesmo modelo de reforma. Mas é bem verdade que o desejo de enquadrar a Igreja numa Ecclesiae primitivae forma é o fundamento do projeto bergogliano. Reformatio, no latim, significa justamente voltar à forma. E não podemos negar que cada decisão de Francisco passa pela pretensão de lapidar o catolicismo, de modo que ele possa atingir sua essência.

A meu ver, Francisco não renunciaria agora. Bento XVI segue bem de saúde, apesar da idade. Ter dois papas aposentados, vivendo no Vaticano, não faria bem à instituição. Se já instrumentalizam Bento XVI, ao ponto de transformarem-no num baluarte de uma ideologia que não é a sua, fariam o mesmo com o Francisco. Imaginem só o trabalho do pontífice reinante diante de dois grupos que se digladiam em torno de dois papas eméritos, cobrando-lhe uma postura que corresponda a suas preferências? Uma catástrofe.

Francisco nunca se opôs à possibilidade de uma renúncia, mas recorreria a essa medida quando tivesse a certeza que a Igreja não padeceria para se adaptar a esse cenário.

Como um bom conhecedor da história do catolicismo, o pontífice argentino sabe que uma boa reforma é um trabalho feito em conjunto, e pode durar anos. Talvez ele não esteja vivo para ver sua conclusão. Consciente disso, sua corrida contra o tempo parte do princípio de que é necessário deixar uma estrutura pronta para que seus sucessores possam levá-la adiante. Após a publicação da constituição de reforma da Cúria Romana, prevista para dezembro, essa base de reforma será formalizada.

Francisco, mesmo após uma cirurgia de média complexidade, se encontra bem. Porém, é nítido que ele precisa diminuir o ritmo, já que o peso da idade, a cada dia que passa, faz-se sentir.

Enquanto isso, seguindo uma práxis antiga, seus inimigos já começam a fabular uma propaganda para convencer a opinião pública de que ele não tem mais condições para governar. Francisco, muito esperto, não deu brecha para que esse tipo de investida tivesse êxito.

Desde que deixou o hospital, em julho deste ano, fez questão de voltar a todo vapor, inclusive tomando decisões que vão desde a reforma do direito canônico ao fechamento de associações que, segundo a definição da Santa Sé, se desviam dos padrões da instituição. Renunciar agora? Um reformador não o faria. E como um bom argentino, não é que ele vai arregar, assim, tão fácil, não é?

*Mirticeli Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália e é colunista do Dom Total, onde publica às sextas-feiras

O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente do Dom Total. O autor assume integral e exclusivamente responsabilidade pela sua opinião.