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A live nossa de cada dia em tempo de pandemia

A live nossa de cada dia em tempo de pandemia.

A internet com a live da cada dia, virou o novo (e único) mercado a ser explorado; o Eldorado possível em tempo de horizontes escassos.
Cenário da live do cantor Gusttavo Lima, no chamado ‘Buteco em casa’.

Os sertanejos tiveram a sacada e, entre eles, Gusttavo Lima foi o pioneiro.
Show intimista travestido de ação social, as lives já se tornaram o melhor e mais rentável negócio para estrelas da música que desejam continuar faturando mesmo em época de quarentena.

Para estes, escanteados dos palcos pelo coronavírus, a internet virou o novo (e único) mercado a ser explorado; o Eldorado possível em tempo de horizontes escassos.

Mas como alegria de abastados e milionários (os sertanejos, no caso) dura pouco, o Youtube entrou de sola na parada e anunciou o que todo mundo já sabia: se alguém está ganhando dinheiro na plataforma, o bolo tem que ser dividido.
Injustiça! – Vêm gritando alguns… Abuso! – revoltam-se outros.

Puro teatro – porque como diria Tavares, o personagem de Chico Anysio, sempre pronto para dar um próximo golpe: “Business is business, certo, Biscoito?”

A Globo, que de boba não tem nada, já entendeu o esquema e quer também navegar pelas mesmas águas.

Estreou o formato em grande estilo no último domingo, exibindo trechos durante a programação de uma live de quarenta e poucos minutos com ninguém menos que Roberto Carlos, justo no dia em que o rei completava anos.
A íntegra foi transmitida pelo Globoplay e Youtube e segue disponível para animar a quarentena da jovem e da velha guarda.

O Xis da questão não é a música ou o caráter supostamente filantrópico das ditas lives, mas o dinheiro que se arrecada com elas.

Os artistas mais cotados já cobram R$ 300, 400, 500 mil para que a marca de um patrocinador apareça em seus pocket shows.
O que a Globo entendeu foi que a receita publicitária das grandes marcas tende a migrar rapidamente da TV para a internet (pelo menos neste momento), e resolveu dar um contragolpe para impedir a sangria anunciada.

Depois de Roberto, Ivete Sangalo já está confirmada para dar as caras em nova live global, seguindo o mesmo roteiro (TV aberta com anúncios e internet sem merchandising) para driblar qualquer possibilidade de divisão de rendimentos – o sonho dourado dos sertanejos e seus empresários.

O próximo capítulo anunciado da saga é a iniciativa de alguns artistas, Gusttavo Lima à frente, de criar uma plataforma particular para divulgar seus produtos audiovisuais, o que os livraria do Youtube.

A pergunta é se os fãs estariam dispostos a pagar para acessar os conteúdos e, em caso afirmativo, se na mesma magnitude com que participam das lives gratuitas.

Sem essa confirmação (impossível hoje de ser aferida, dado o ineditismo da proposta), os patrocínios minguariam e voltaria tudo à estaca zero.
De certeza mesmo, só há uma: live sem lucro, nem pensar.

A live, dois pesos, duas medidas.

Não foi do dia para a noite que as tais regras que vêm derrubando lives surgiram no Youtube.
As de direitos autorais, por exemplo, sempre existiram, mas como só atingiam o usuário independente e favoreciam o mercado, nunca se levantou uma voz, digamos, mais graúda para questioná-las.

É o caso de músicas cujos direitos não são dos artistas que se apresentam. Segundo o Youtube, não podem ser incluídas em lives, porque ao permanecerem disponíveis no site, ferem os royalties de gravadoras e compositores.

Imagine agora a situação: eu não posso publicar uma canção da dupla sertaneja Henrique e Juliano porque não possuo os direitos sobre o trabalho deles.

(Ainda que eu não consiga me ver publicando qualquer coisa relativa a Henrique e Juliano, vamos imaginar hipoteticamente, só para que o argumento possa se desenvolver.)

Durante uma live no último domingo (no mesmo horário em que Roberto Carlos se apresentava, pobres coitados), a tal dupla já citada se abespinhou por ter sido proibida de cantar – para que depois permanecesse publicada – uma música de Zezé di Camargo e Luciano.

Pois é… Eles acham bom que a regra sirva para mim, mas não para eles.

Se qualquer um de nós fizesse isso, seria acusado de pirataria. Mas Henrique e Juliano se ressentem publicamente da impossibilidade imposta, talvez sem nem entender que estariam praticando a mesmíssima coisa.

Duas lives, dois Robertos.

Enquanto Roberto Carlos se emocionava em sua live de aniversário (exortando a necessidade da quarentena e do uso de máscaras, prestando importante apoio na luta contra a pandemia), outro Roberto foi resgatado do passado para protagonizar um momento de trevas na internet.

Me refiro ao presidente do PTB, Roberto Jefferson.
Entrevistado por um jornalista do Paraná, profícuo em divulgar fake news, o ex-deputado revelou um suposto complô capitaneado por Rodrigo Maia para derrubar Bolsonaro.

Como de hábito em sua carreira de denúncias vazias, não foi capaz de apresentar prova alguma.

Para divulgar a nova fake news, paralelamente, o presidente transmitia uma outra (e absurda) live, onde aparecia simplesmente assistindo à live da tal denúncia.
Com este simples gesto, declarava, ainda que de forma tácita, estar de acordo com o que era dito e apresentava ao Brasil seu mais novo aliado: Roberto “sai de baixo” Jefferson.

O curioso é que com uma live dentro da outra, Bolsonaro inaugurou involuntariamente uma nova modalidade dentro da linguagem das redes: a meta-live.

Reinventando a roda.

À parte o fato de não ser ao vivo, qual a diferença da live para o programa que o jornalista Fernando Faro criou e dirigiu até à morte, o Ensaio, na TV Cultura?

O formato, alçado a bezerro de ouro nesta época de quarentena, repete do Ensaio o tom intimista, com o artista interpretando suas canções em um estúdio vazio, sem público. Baixo, como os amigos chamavam o Faro, era o único presente além dos músicos, porém apenas em off, conversando com o convidado.

Na edição do programa, sua participação era cortada e sobreviviam apenas as respostas, porque para ele, sabiamente, “o entrevistador é um ruído” (como declarou para a Folha, em 2007).

De Gonzaguinha a Chico, Caetano, Gil e Melodia; ou de Lupicínio a Tom Zé e Ney Matogrosso; de Nação Zumbi a Emicida; Gal, Bethânia, Nana, Elza, Maysa, Elis… todo mundo passou pelo Ensaio e – o que é melhor: sem ganhar um tostão.

Para aqueles que cobram uma live de Caetano (a começar por Paula Lavigne, sua mulher, em posts constrangedores no Instagram), vale saber que há outras opções à mão.

Grande parte do acervo do Ensaio está disponível no mesmo Youtube onde hoje se apresentam de sertanejos a pagodeiros em lives patrocinadas a peso de ouro.

Fico me perguntando o que o Faro diria sobre isso tudo.

*Alexis Parrot é crítico de televisão, roteirista e jornalista. Escreve às terças-feiras para o Dom Total

Fonte: Dom Total

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