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A live de Páscoa do capitão

Bolsonaro e a live de Páscoa.

Não satisfeito em incitar o risco de morte na população, em nome de sua mesquinha agenda de poder, Bolsonaro conseguiu esculhambar até com a Páscoa
Presidente da República, Jair Bolsonaro durante Celebração de Páscoa por videoconferência

Bolsonaro já havia descoberto o mecanismo, mas foi a quarentena obrigada pela Covid-19 a responsável pela sua universalização definitiva. Estamos vivendo a era das lives e dificilmente conseguiremos nos livrar delas, mesmo após a passagem da pandemia.

No último domingo, usando o fim da quaresma como pretexto e incitado pelo fervor evangélico da primeira dama (de quem partiu a ideia), o Planalto reuniu em teleconferência várias lideranças religiosas para levar ao país “uma palavra de fé, de esperança e de… o significado da Páscoa”, nas palavras como sempre trôpegas do próprio presidente.

Ecumênica ma non troppo, das três dúzias e pouco de convidados, deram as caras na live apenas dois católicos, dois batistas e um rabino.

De resto, um cortejo sem fim de pastores, ministros, bispos, missionários e cantores evangélicos (não por acaso, uma das bases político-eleitorais mais fiéis do bolsonarismo).

Iris Abravanel, escolhida sabe-se lá porque como mestra de cerimônias, abriu o evento recitando platitudes sobre coelhos e chocolates. Como aquela tia doidinha que todo mundo tem ou pelo menos conhece alguém que tem, tratava os convidados com extrema falta de cerimônia, simulando intimidade e um clima falso de “pode entrar que a casa é sua”.

Foi convidada apenas para organizar a fila de quem deveria falar depois de quem, mas se empolgou, achou que estava pregando e, como a Emília de Monteiro Lobato, abriu a torneirinha de asneiras.

Disse que na época de Jesus, Israel vivia sob a “proteção de Roma”, apagando com uma borracha a dominação sangrenta do Império Romano e transformando toda a ideia do imperialismo em um ato de bondade ou coisa que o valha. Se a afirmação foi movida por ignorância ou por má fé, nunca saberemos, ainda que pouco importe. A este tipo de comentário nos é vetado fazer vista grossa.

É assim que se começa a negar a memória, reescrevendo a história e abrindo caminho para que a infâmia novamente se instale.

Sem conseguir citar corretamente o nome de vários convidados (Hermínio passou a ser Hermírio e Eduardo Bravo virou “Brown”), a protoapresentadora não se entendia nem com os comandos da plataforma e inúmeras vezes perdia o sinal de quem era anunciado. A certa altura, desabafou no ar: “é complicado ver aqui”, olhando para a tela do computador, apertando os olhos por cima das enormes armações douradas dos óculos, e se encaixando como uma luva naquilo que mais representa o governo Bolsonaro – o amadorismo.

Milicianos da fé

O Bravo já citado, trajando terno preto combinado com camisa e gravata de um azul royal vibrante, lembrava mais um dos veteranos do grupo Roupa Nova do que propriamente um bispo, o título com que se apresenta. Representante de Edir “nada a perder” Macedo, terminou a participação falando diretamente para o presidente: “…quero dizer que nós vamos vencer essa situação, não apenas o coronavírus, mas todos os inimigos que se levantarem contra nós”, se referindo claramente a Bolsonaro e à matilha que cerca o dono da Universal e ameaçando de forma velada a quem se opuser a eles.

O apóstolo Estevam Hernandes, da Renascer, era o próprio Gatão de Meia Idade. O bronzeado alaranjado, bem ao estilo Trump, contrastava com as luzes no cabelo e os dentes clareados, reluzindo em um sorriso tão ou mais artificial.

Ao seu lado, a inseparável bispa Sônia, esposa e companheira com quem parece dividir tudo, mas principalmente o laquê.

A mensagem do apóstolo, se não empolgou, também não chegou a ser vexaminosa. Essa parte ficou a cargo da bispa, penteada, maquiada e vestida como se fosse participar daqueles sofríveis realities da franquia The real housewives. De um salto, pôs-se de pé e entoou uma música absurda dizendo que Jesus nunca chega atrasado, com caras, bocas e gestos exagerados, dignos das piores paródias já vistas no Zorra total, porém, com a desvantagem de estar fazendo tudo a sério.

Não custa lembrar que o casal chegou a ser preso nos EUA por lavagem de dinheiro e evasão de divisas, ao tentar entrar no país com mais de cinquenta mil dólares não declarados, muitos deles escondidos dentro de uma Bíblia.

Além disso, têm uma enorme dívida trabalhista que insistem em não acertar com ex-funcionários e empurram com a barriga o pagamento das indenizações aos mais de cem feridos e às famílias dos nove mortos, vítimas do desabamento do teto de sua sede em São Paulo, no ano de 2009.

Com este currículo, seria questionável a presença dos dois em um pronunciamento à nação ao lado do presidente, mas Bolsonaro e seus filhos costumam se cercar de gente bem mais perigosa.

O iracundo Silas Malafaia também deu o ar da graça (“um querido”, segundo Iris Abravanel).

Com a arrogância costumeira, intitulou-se como “uma das vozes proféticas da nação brasileira”. Colocou-se contra a “extrema imprensa”, seja lá o que isso signifique, chamando-a de “profeta do caos” e motivada por interesses escusos, mas sem declinar quais seriam.

Disparou citações da Bíblia, com livros, capítulos e versículos na ponta da língua. De Lucas, pulou para Coríntios, voltou lá em Hebreus e finalizou no Apocalipse, como se uma lição simplesmente decorada fosse sinal de sabedoria.
Ao final, recebeu um elogio da patroa do patrão, mais inadequado impossível: Dona Iris disse que o admira muito, pela coragem e pela fidelidade (a quem? Só se for a ele mesmo).

André Valadão, da Igreja Batista da Lagoinha de BH, acabou respondendo uma pergunta da confusa MC dirigida ao rabino Leib Rojtenberg, do DF.

Animado com a oportunidade de dar uma cutucada nos judeus, acabou se atrapalhando e disse que “existem sim alguns segmentos judaicos que continuam sacrificando animais e existem outros que ainda não”.
O empresário Valadão, que no inicio do ano botou na praça o cartão de crédito Fé (uma marca registrada sua), surpreende de novo e agora quer adivinhar ritos futuros da religião judaica. Uma máquina, o Valadão.

A pandemia nossa de cada dia

Todos citaram com maior ou menor ênfase o coronavírus, mas três dos convidados merecem destaque. O bispo Abner Ferreira, da Assembléia de Deus Ministério Madureira, na ânsia de agradar a Bolsonaro e sua irresponsabilidade criminosa frente à pandemia, mentiu descaradamente ao bradar que “os números estão caindo”, quando o que ocorre é justamente o oposto.

Recentemente expulso do próprio partido, o deputado Marco Feliciano, com a desfaçatez habitual, fez pior ainda. Para ele, após o jejum proposto por Bolsonaro no domingo de Ramos, até a “extrema imprensa” está se curvando; as pessoas “serão curadas com a cloroquina indicada pelo presidente” e “o mal está caindo por si só”.

E R.R. Soares, figurinha manjada do horário nobre comprado diariamente na Band, chega para arrematar a loucura toda com ares e vocabulário dignos do Beato Salu:

“Essa coronavírus que tá aí atacando muitos lados, nós oramos em nome de Jesus Cristo e nós amarramos esse principado, essa potestade maligna, esse príncipe das trevas desse século, essas hostes espirituais da maldade, que estão infectando o povo no mundo todo, e daqui nós damos as bênçãos e dizemos: demônio, você está amarrado em nome do Senhor Jesus e não toque mais nas pessoas!”

Pronto, resolvido! Quem precisa da Organização Mundial da Saúde, se o missionário Soares já combinou com Jesus que o capeta do corona está amarrado?

O triste show de desinformação, exploração da fé e propaganda política do presidente durou mais de duas horas e foi transmitido na íntegra via internet e pela TV Brasil.

Um trecho acabou entrando também na programação do SBT, certamente um afago do patrão na sua senhora e no capitão, seu aliado declarado.

*Alexis Parrot é crítico de televisão, roteirista e jornalista.

Fonte: Dom Total

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