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Francisco e a tarefa de reconstruir a Igreja

Com plano de reforma da Cúria Romana pronto para ser publicado, uma reflexão sobre o que representa Francisco, o papa argentino para os cristãos de hoje.

Lembro-me bem o quanto Francisco foi criticado ao propor que os padres se preocupassem mais com os fiéis que em trocar o carro.

A humanidade expressa pelo papa recria em nosso imaginário a lembrança do Jesus dos Evangelhos.

Que o cristianismo moldou a cultura do ocidente, disso ninguém tem dúvida.
Reconhecê-lo como patrimônio é ser fiel à história de todos que estamos do “lado de cá” do mundo.
Muito além da inquisição, “dos papas do luxo” e de tantas outras sombras que fazem parte dessa trajetória, há um passado a ser explorado que revela o quanto o cristianismo foi construído por grandes personagens, cujo legado se perpetua e inspira.

São Francisco de Assis representa uma parte desse passado que até quem não é cristão faz questão de resgatar.

Há quase 7 anos, o frade Raniero Cantalamessa, o pregador oficial do papa, foi o primeiro a reconhecer que estávamos diante de um papado especial.
Na sexta-feira santa de 2013 – a primeira celebrada pelo papa argentino, no Vaticano – o religioso fez uma espécie de profecia a respeito do governo papal que, nos anos posteriores, conquistaria até os mais céticos.

“É o que acontece nos edifícios antigos. Com o passar dos séculos, para se adaptar às exigências do momento, acrescentam tijolos, escadas ou quartos.
Chega o tempo no qual chegam à conclusão que essas adaptações não respondem mais às exigências atuais, mas se tornam um obstáculo.
Sendo assim, é necessário alguém que tenha a coragem de abatê-las e levar esse edifício à simplicidade e linearidade das suas origens”, disse.

Se analisarmos cada palavra presente nessa metáfora, o frade não fala de destruir o edifício.

Mas de retirar os excessos que ofuscam a beleza que só a originalidade é capaz de irradiar.
Lembro-me bem o quanto Francisco foi criticado ao propor que os padres se preocupassem mais com os fiéis que em trocar o carro.
Ou quando resolveu morar na casa Santa Marta, contrariando a “tradição papal” de viver no palácio apostólico.

É isso: com o passar do tempo, adicionamos à tradição uma série de “escadas, tijolos e quartos” desnecessários, que impressionam, mas não atraem mais ninguém.

E pensar doutrina cristã se baseia sobretudo no testemunho daqueles que se dizem seus adeptos.
O cristianismo de hoje é fiel à sua proposta originária? E o que devemos fazer para que essa mensagem chegue às pessoas?

São essas perguntas que movem o pontificado de Francisco.
E ele paga o preço ao tentar abater esses muros da aparência, dos apegos e do “cristianismo de corte” que em nada têm a ver com a doutrina de Cristo.

Em Francisco, vemos ressurgir essa figura do “bom cristão” que há muito tempo não se via.

Não que os papas anteriores não o fossem. Porém, na era em que todo “apelo visual” é bem-vindo, o registro de um ato de bondade sempre conta.
Um papa que abraça um homem repleto de feridas, recria no nosso imaginário aquele Jesus Cristo descrito nos evangelhos que parece ter se perdido com o tempo.
Apesar de toda a superficialidade que impera nas redes sociais, as pessoas anseiam por humanidade.
Quanto mais humano, mais crível. Todas, independente da profissão religiosa, buscam essa essência.

Sendo assim, estão cansadas dos protocolos das palavras lançadas ao vento.

E ter uma certa familiaridade com o líder máximo da Igreja Católica, ao ponto de senti-lo tão acessível quanto o padre da nossa paróquia, é o grande “trunfo” de Francisco e a maior revolução que ele causou.
O pontífice entendeu que o cristianismo só poderá subsistir com pessoas que estão dispostas a caminhar lado a lado com o homem moderno.

“Um padre com cheiro de ovelhas”, “uma Igreja que percorre os lamaçais e as vias acidentadas”.
As figuras de linguagem de um pontificado feito de parábolas, abraços e vida.
“Francisco, vai e reconstrói a minha Igreja”.

*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.
Desde 2009, cobre o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália e é colunista do Dom Total, onde publica às sextas-feiras

Fonte: Dom Total